Projeto em Educação Popular aproxima estudantes de Pedagogia das violações enfrentadas pelos moradores(as) de Piquiá de Baixo, em Açailândia (MA)

Projeto em Educação Popular aproxima estudantes de Pedagogia das violações enfrentadas pelos moradores(as) de Piquiá de Baixo, em Açailândia (MA)

A imersão na comunidade parte de uma necessidade de compreender uma série de violações aos direitos humanos que atingem não só um bairro, mas toda a região onde a cadeia produtiva da mineração está presente

A ideia de criar um projeto que se voltasse para a realidade de Piquiá de Baixo se concretizou a partir de uma visita do professor Marcos Lira, da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão (UEMASUL), ao bairro, em abril deste ano. Acompanhado pela Justiça nos Trilhos (JnT), escutou os(as) moradores(as), e conheceu as principais problemáticas.

Marcos dá aula no curso de Pedagogia, e uma de suas disciplinas trabalha a conscientização ambiental dentro das ciências naturais. Ao entender o contexto de Piquiá como um território dentro de uma região impactada por empreendimentos predatórios, como a mineração e o agronegócio, percebeu que poderia transformar o projeto em um grupo de pesquisa-ação. A partir da escuta dos problemas e desafios de quem vive na pele essas situações, os estudantes poderão refletir sobre a realidade em que estão inseridos e também são impactados e, com isso, promover a transformação social na realidade.

“Piquiá é um território muito afetado, e é na região em que os alunos de Pedagogia estão inseridos. Muitos alunos são de lá, aí eu pensei: vou levar eles para ver essa realidade. Então, comecei um esboço do projeto e levei até a Justiça nos Trilhos, e aí começamos a construir isso coletivamente. Esse é um projeto que começou a partir de uma disciplina, mas foi ganhando uma perspectiva mais ampla”, explica Marcos.

Com o objetivo de introduzir os(as) alunos(as) na realidade que iriam se propor a entender, a roda de conversa na UEMASUL de Açailândia (MA), no dia 24 de abril, é fruto dessa construção. Com o tema “Educação Popular e Ciência: realidade e contexto do território de Piquiá”, a mesa trouxe a estudante de Pedagogia e moradora do bairro, Antônia Flávia, falando sobre o percurso histórico de luta da comunidade e sua experiência enquanto comunicadora e defensora dos direitos humanos no território.

Além de Flávia, participou a educadora popular Valdênia Paulino e o comunicador José Carlos Almeida, ambos da JnT, junto com a professora Betânia Barroso, coordenadora do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Educação Popular – GEPEEP, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

“Não somos apenas vítimas”

Antes de ser estudante de Pedagogia, Antônia Flávia é moradora de Piquiá de Baixo há 29 anos e, atualmente, faz parte da diretoria da Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá (ACMP). Cresceu com as histórias de como era a vida na comunidade antes das violações, do pó de ferro nos móveis e nas frutas, do barulho dos trens e da rachadura nas casas. Quando fala de Piquiá, Flávia deixa claro que a comunidade não escolheu esses impactos.

Antônia Flávia, estudante de pedagogia e moradora de Piquiá de Baixo, durante o evento na UEMASUL.

Para ela, foi “muito gratificante e importante falar da história do meu bairro para que outras pessoas possam conhecer. Para que elas não nos vejam como vítimas, embora sejamos. Pra que elas não nos vejam como coitadinhos”. Essa fala de Flávia humaniza os moradores enquanto sujeitos de direitos e desmistifica a ideia de que as pessoas unicamente afetadas pela mineração são as que moram em Piquiá de Baixo. 

Piquiá de Cima, nem sempre citado, e que se localiza acima do bairro, como o próprio nome já descreve, vivencia as mesmas violações. O bairro Novo Oriente também é afetado pela cadeia produtiva da mineração, assim como a Vila Ildemar, maior bairro em população do município, também sente os impactos da Estrada de Ferro Carajás (EFC). Ou seja, o município de Açailândia vivencia esses impactos como um todo, visto que a Vale S.A. possui um entreposto de minério na região.

Sobre o projeto que faz parte enquanto estudante, Flávia entende que “a realidade de uma comunidade serve para transformar você dentro da pedagogia, porque assim como você tá observando e vendo a realidade de uma comunidade, você vai também ver essa realidade dentro da sala de aula. Você vai ver a pluralidade e a diversidade que você vai encontrar”, reflete ela.

A organização popular enquanto instrumento de mudanças

A perspectiva freiriana rodeou toda a mesa pela qual ocorreu o diálogo. Para a educadora popular Valdênia Paulino (JnT), “é impossível pensar numa perspectiva de educação sem compreender um território, pois só isso vai tornar possível um processo pedagógico por parte dos alunos e das alunas de pedagogia naquele espaço”, reflete.

A educadora popular da Justiça nos Trilhos, Valdênia Paulino, durante o evento na UEMASUL.

Segundo ela, começar escutando a história de um território onde se vai fazer um trabalho é importantíssimo porque, como dizia Milton Santos, o território vivido se entrelaça: é o território, a pessoa, a natureza, os direitos, os afetos. “E Flávia, como aluna do curso de pedagogia, pensa que bonito é esse protagonismo, né. Ela faz essa conexão, ela é essa sujeita viva desse território. Fala do próprio corpo dela, dessa vivência, e com muita autoridade, por exemplo”, comenta Valdênia.

A ideia da mesa foi justamente convidar, sensibilizar e instigar esse corpo discente para sentir o desejo de conhecer esse território como paradigma de exercícios de direito. Não só porque eles e elas podem colaborar e também receber uma colaboração da comunidade, mas para entenderem que esse território está dentro de um município, de um Estado, de uma nação. “Então, se eu vou falar de educação, eu quero educar para quê paradigma de sociedade? Para qual sociedade eu quero trabalhar e formar?”, questiona Valdênia.

Conhecendo a realidade de Piquiá na prática

Andressa Pereira é estudante de Pedagogia e já morou em Piquiá de Cima, há alguns anos atrás. Para ela, a iniciativa do projeto é necessária porque muitas pessoas de Açailândia não conhecem a realidade de Piquiá na prática. “Essa não é só uma luta de uma comunidade isolada, e sim de todos nós. Isso afeta as pessoas que estão lá, mas em segundo plano, pode afetar a gente. Como moramos na mesma atmosfera, todos somos afetados. Não é só uma luta deles, mas de todo mundo”, reflete a estudante.

Ao ouvir sobre a situação da educação no bairro, uma questão chamou a atenção da estudante: “O fato de ter séries multisseriadas, pois imagina o tamanho da perda da educação para esses alunos que estão assim. Ainda mais na zona urbana. A questão da educação mexeu muito com a gente.  A gente sabe que a realidade só muda com a educação, e quando nem educação tem como era para acontecer, como é que fica?”, questiona.

Outro ponto que se destacou para Andressa foi a questão do reassentamento Piquiá da Conquista, local onde as famílias vão ser realocadas para longe da poluição causada pelas empresas ao redor. “O Piquiá da Conquista é mesmo uma conquista, mas você ter que sair de onde se criou para poder morar em outro lugar, querendo ou não, é um impacto. Tanto na vida das crianças que são acostumadas a brincar no banho do 40, como eu brincava quando morava em Piquiá de Cima, quanto das pessoas mais velhas. Acho que não deve ser fácil”, afirma.

“Piquiá de Baixo não é só luta, é alegria e aconchego”

Alguns dias após a mesa, no dia 24/04, alguns dos alunos do projeto visitaram pela primeira vez a comunidade de Piquiá de Baixo, junto do professor Marcos Lira e o comunicador popular da Justiça nos Trilhos (JnT), José Carlos Almeida.

Na ocasião, foram recebidos pela Anna, do grupo Mulheres Artesãs de Piquiá de Baixo. Logo no começo, Anna disse “O piquiá de Baixo não é só luta, é alegria e aconchego”. Com essas palavras, o grupo visitou pontos da comunidade em que acontecem várias atividades. E também conheceu as iniciativas que tem na comunidade.

O grupo conheceu as mulheres da Horta para a Cozinha, o Canto do Saber José Mauro Costa Ferreira, o Clube de Mães e a escola de educação infantil municipal Almirante Barroso. A partir dessa visita, os estudantes elaboraram atividades que poderão realizar na comunidade junto com os moradores. As atividades serão discutidas e contarão com o acompanhamento da Justiça nos Trilhos (JnT).

“A nossa luta é por moradia digna”

“A nossa luta é por moradia digna”

Piquiá de Baixo é uma comunidade localizada no Município de Açailândia, estado do Maranhão, no Nordeste brasileiro.Cerca de 1.100 pessoas que moram em Piquiá sofrem cotidianamente com a poluição do ar, da água, do solo e a poluição sonora de empresas siderúrgicas que se instalaram ao redor das casas, no final dos anos 80. A isso se somam as operações de transporte, descarregamento e carregamento de minério de ferro e lingotes de ferro-gusa pela empresa Vale S.A(uma das maiores mineradoras do mundo).

Com a chegada das empresas os moradores denunciam uma série de violações de direitos sofridas em Piquiá de Baixo: doenças respiratórias, oftalmológicas e dermatológicas, queimaduras graves e fatais, dificuldades de acesso aos serviços de saúde, ausência de infraestrutura básica, falta de acesso à informação e risco à liberdade de expressão, dentre outros.

Todos esses problemas são mencionados no relatório “PIQUIÁ FOI À LUTA: Um balanço do cumprimento das recomendações para abordar as violações aos direitos humanos relacionadas à indústria da mineração e da siderurgia em Açailândia, Brasil”, realizado por FIDH e JnT. 

Luta contra violações de mineradora é diversa e bebe na ancestralidade

Luta contra violações de mineradora é diversa e bebe na ancestralidade

Os quilombolas de Santa Rosa dos Pretos, à revelia das opressões que a mineradora Vale e os governos tentam lhes impor, se articulam e se organizam internamente – e junto com outros quilombolas e também povos indígenas – para criarem novos caminhos de resistência e de bem-viver. 

Formações políticas, denúncias, protestos, tambores, rituais de matriz africana, festas e festejos. A luta em Santa Rosa dos Pretos se dá de diversas formas. 

Em 2017 uma denúncia ao Ministério Público Federal (MPF) e à Defensoria Pública da União (DPU) paralisaram uma obra irregular de duplicação da BR 135. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), os quilombolas descobriram que o DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Trânsito) pretendia derrubar 345 casas para duplicar a estrada.

Em 2011, uma Ação Civil Pública (ACP) contra a Vale S.A. obrigou a empresa a, entre outras reparações, recuperar um dos principais igarapés do quilombo que a transnacional soterrou com concreto. 

Nos rituais no terreiro de Tambor de Mina, pede-se aos Encantados que descem ali a força, a proteção e a sabedoria para se defender as terras e águas da Santa Rosa.

Em 2017, a criação do coletivo Agentes Agroflorestais Quilombolas (AAQ), formado por 30 jovens do quilombo – moças e rapazes – levou nova energia ao território. São esses jovens que estão recuperando os igarapés, matas, a autonomia alimentar, de água e autonomia política de Santa Rosa dos Pretos. 

Para fazer algo novo, eles buscam inspiração na ancestralidade. Por isso estão fortes e protegidos: se apoiam naquilo que a branquitude não alcança e nunca alcançará.