Manifestação de familiares de vítimas da Vale no crime em Brumadinho (MG). Foto: Thais Mendes
No mais recente relatório divulgado aos seus acionistas durante assembleia geral anual de 2025, realizada dia 30 de abril, a mineradora Vale apresentou uma proposta ambiciosa: um plano de incentivo para recompensar financeiramente os altos executivos que se expuserem a mais riscos pelos negócios da empresa. Chamada de “Plano Global de Incentivo de Longo Prazo Baseado em Ações”, a recompensa financeira surge como estratégia da Vale destinada a estimular a cultura de “dono da empresa” por parte dos executivos, e assim evitar que peçam demissão.
A estratégia foi apresentada pela mineradora menos de um ano depois de um de seus ex-diretores, Gerd Peter Poppinga, ter sido condenado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a pagar uma multa de R$ 27 milhões por não ter sido diligente em suas obrigações no contexto do rompimento da barragem B1, da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG), em 25 de janeiro de 2019. O crime-tragédia matou 272 pessoas, destruiu casas, contaminou a terra e cursos d’água, devastou ecossistemas e destruiu modos de vida tradicionais ao longo do rio Paraopeba.
Trata-se da primeira condenação individual relacionada ao crime, quase seis anos após sua ocorrência, e marca um precedente importante na responsabilização de executivos por decisões que colocam vidas humanas e o meio ambiente em risco. Além disso, a decisão reforça os indícios de graves falhas de governança na Vale.
No mesmo julgamento de Poppinga, em dezembro de 2024, o ex-presidente da empresa na época do crime, Fabio Schvartsman, foi absolvido. No entanto, em abril desse ano, o Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) reacendeu a possibilidade de responsabilização penal de Schvartsman ao autorizar o envio de um recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) que pode reabrir a ação penal contra o ex-presidente da Vale. Se isso acontecer, Schvartsman voltará a responder legalmente por crimes ambientais e homicídios relacionados a um dos maiores crimes-tragédias sociombientais da história do Brasil, ao lado do crime-tragédia de Mariana (MG), em 2015, também cometido pela Vale.
No final de março de 2025, o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) determinou o cancelamento dos registros profissionais de cinco engenheiros responsabilizados pelo rompimento da barragem em Brumadinho. A decisão, tornada pública apenasem abril, atinge profissionais da Vale e da consultoria TÜV SÜD – que atestou a segurança da barragem –, incluindo engenheiros e um diretor da mineradora. Segundo o Confea, as punições foram motivadas por negligência e omissão técnica grave, evidenciadas em um processo iniciado em 2021 pelo Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura de Minas Gerais (CREA-MG).
Cabe recordar a ação judicial movida pelo Ministério Público Federal em 2020, que incluiu pedido de intervenção judicial na empresa após a identificação de um esquema de irresponsabilidade institucionalizada, no qual a direção incentivava e encobria práticas inseguras, reprimia denúncias internas e buscava blindagem contra responsabilizações. Para o MPF, “vigora na Vale um verdadeiro sistema de irresponsabilidade corporativa”, e por isso, os desastres ocorridos não são exceção, mas consequência de uma política “que privilegia a produção e o lucro em detrimento da segurança”.
Nesse contexto, a cultura de “dono da empresa” promovida pela Vale por meio da premiação de quem assumir mais riscos pelo bem dos negócios, tem contornos temerários. Aplicada em uma companhia marcada por crimes socioambientais, essa cultura de dono revela uma lógica de governança voltada à preservação da cadeia de comando, não à transformação institucional. Assim, a mineradora reforça mecanismos de proteção da elite corporativa, justamente no momento em que começam a se materializar as primeiras condenações por decisões que custaram centenas de vidas.
Para nós, da Articulação dos Atingidos e Atingidas pela Vale (AIAAV), é urgente explicitar e denunciar mais essa estratégia da mineradora, que mesmo após protagonizar dois dos maiores crimes socioambientais do Brasil – quiçá do mundo – emprega esforços e recursos para premiar o risco, proteger o lucro e permitir o crime.
Evento em São Luís busca fortalecer a luta histórica pela criação da Reserva Extrativista Tauá-Mirim e pelo reconhecimento das comunidades locais.
A conservação da floresta em Tauá-Mirim é fruto da relação ancestral entre povo e território. | Foto: Igor Cariman, 2025
No próximo dia 26 de abril, será lançada a campanha “Resex Tauá-Mirim Já!”, que visa reforçar a mobilização das comunidades da zona rural de São Luís, no Maranhão, pela criação da Reserva Extrativista (Resex) Tauá-Mirim. O evento acontecerá a partir das 8h, no Sindicato dos Bancários de São Luís, e reunirá lideranças comunitárias, movimentos sociais, pesquisadores e apoiadores da causa ambiental e dos direitos dos povos tradicionais.
A área pleiteada para a Resex Tauá-Mirim, que abrange mais de 16 mil hectares na costa amazônica do Maranhão, é habitat de cerca de 2.200 famílias. Entre as comunidades que fazem parte dessa região estão Taim, Rio dos Cachorros, Cajueiro, Limoeiro, Amapá, Jacamim, Tauá-Mirim, entre outras. As atividades econômicas locais incluem a pesca artesanal, a mariscagem, a agricultura familiar e o extrativismo vegetal — práticas que, além de garantir a subsistência das famílias, promovem a cultura, a sustentabilidade e a soberania alimentar.
Luta e resistência por mais de duas décadas
A mobilização pela criação da Resex Tauá-Mirim começou em 2003, com o apoio do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Após a conclusão de estudos favoráveis à criação da unidade, o processo foi encaminhado em 2007 ao Ministério do Meio Ambiente, mas até hoje não houve avanços no reconhecimento oficial da reserva. Sem a decretação da Resex, as comunidades permanecem vulneráveis ao avanço de grandes empreendimentos, como portos privados, ferrovias, rodovias e zonas industriais, muitos deles voltados ao escoamento de commodities do Matopiba — a região que abrange os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.
Ao longo dessas duas décadas, as comunidades enfrentaram impasses jurídicos e diversos conflitos no território. A ameaça constante do grande capital, que busca transformar a zona rural da Ilha de Upaon-Açu em área industrial e portuária, coloca em risco o modo de vida dessas populações e a preservação ambiental da região. Em sua luta, as comunidades têm resistido com o apoio de movimentos sociais e ambientais, que defendem a importância de proteger a biodiversidade e os modos de vida tradicionais da região.
Pescadores artesanais da comunidade de Portinho mantêm viva a cultura e os saberes do território. | Foto: Luana Appel, 2024
“A luta pela Resex é também contra as mudanças climáticas”
Beto do Taim, pescador tradicional e membro do Movimento Nacional dos Pescadores (Monape), e da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas (Confrem), explica que a criação da Resex é fundamental para proteger as atividades sustentáveis que garantem a alimentação e o sustento das populações locais. Ele destaca, ainda, os impactos ambientais causados pelo avanço da mineração e do agronegócio na região, que afetam diretamente a pesca e o extrativismo.
“A pesca tradicional e o extrativismo, fontes de alimento e vida para as populações da Resex e regiões próximas, sofrem os impactos de indústrias da mineração e do agronegócio voltadas à exportação. Estão transformando São Luís numa zona de sacrifício ambiental, marcada pela poluição e pela degradação. Proteger esse território é cuidar das raízes da cultura e da natureza, para o bem viver de hoje e das gerações futuras”, afirmou Beto.
Em 2015, as comunidades realizaram uma Assembleia Popular na comunidade do Taim, onde se autoproclamaram parte da Resex Tauá-Mirim e criaram um Conselho Gestor próprio, que desde então articula a defesa do território. Para as lideranças locais, é urgente a decretação oficial da reserva, que garantiria a proteção legal da área e da biodiversidade.
A Resex como refúgio de vida e cultura
Além da biodiversidade, a Resex Tauá-Mirim abriga a tradição cultural e espiritual de diversas comunidades. A região é morada de Encantados da tradição afro-indígena do Maranhão, que têm papel fundamental na preservação de florestas, manguezais e nascentes, essenciais para a regulação climática e para a manutenção da vida. Dona Maria Máxima Pires, liderança ancestral da região, costumava dizer que “a Resex é o pulmão de São Luís”, refletindo a importância vital da área para a saúde ambiental da capital maranhense.
A vida brota do território: em Taim, os moradores produzem alimento e pertencimento em diálogo com a natureza. | Foto: Fran Gonçalves, 2025
O lançamento da campanha
O lançamento da campanha “Resex Tauá-Mirim Já!” será um evento de mobilização e conscientização, com a apresentação da petição, apresentações culturais e comercialização de produtos das comunidades. O objetivo é envolver diferentes setores da sociedade na defesa da Resex e no fortalecimento da luta das comunidades tradicionais. A convocatória é clara: apoiar a campanha é apoiar a vida.
O fruto é semente e memória da floresta: em cada colheita, a vida se refaz em Tauá-Mirim. | Foto: João Victor, 2024
Como participar
Estar presente no evento no dia 26 de abril, a partir das 8h, no Sindicato dos Bancários de São Luís.
Divulgar a campanha em redes sociais e na imprensa (@resextauamirimja).
Cobrar das autoridades o reconhecimento da Resex Tauá-Mirim.
Apoiar as ações das comunidades em defesa do território.
O momento de ação é agora. O futuro das comunidades e do meio ambiente da região depende do apoio à criação da Resex Tauá-Mirim.
Junte-se à campanha e ajude a garantir a proteção deste território essencial para a vida e para o futuro de São Luís e da Amazônia Maranhense.
Em memória do Papa que ouviu o clamor dos povos sacrificados pelo lucro
Hoje, 21 de abril de 2025, o mundo se despede de um homem que ousou sonhar com justiça onde só havia abandono. Papa Francisco partiu, mas sua memória seguirá viva no coração das comunidades que ele escolheu escutar, acompanhar e defender. Entre elas, a comunidade de Piquiá de Baixo, em Açailândia (MA), carrega um testemunho profundo de gratidão e afeto.
Francisco foi o Papa que denunciou o “capitalismo predatório” e as suas violências contra a vida e a casa comum. Foi o Papa que acolheu os Missionários Combonianos e abraçou, com emoção e firmeza, a luta de um povo sufocado pela poluição e pela negligência do Estado e das empresas mineradoras.
Em 2015, quando recebeu no Vaticano representantes dos Combonianos em seu Capítulo Geral, o Papa posou com uma camisa que trazia a mensagem: “Piquiá de Baixo, Reassentamento Já!”. Um gesto singelo, mas carregado de significado. Naquela manhã, Francisco ouviu o clamor dos moradores que há anos resistem aos impactos do Programa Grande Carajás e do polo siderúrgico vizinho. Ali, ele se fez aliado da luta por dignidade, reparação e vida.
Anos depois, durante o Sínodo da Amazônia, o Papa voltou a escutar o grito de Piquiá de Baixo. Através da rede ecumênica Igrejas e Mineração, Francisco recebeu relatos da jovem Flávia Antônia, mãe e liderança comunitária, que denunciou os crimes ambientais cometidos contra sua comunidade. O Papa escutou e acolheu. Como sempre fez com os que vivem à margem do sistema que mata em nome do progresso.
Francisco abriu as portas da Igreja para as causas dos pobres, dos povos originários e das comunidades sacrificadas pela ganância. Ao lado da Justiça nos Trilhos, da Rede Igrejas e Mineração e de tantos movimentos que resistem à mineração predatória, ele foi voz profética. Com coragem, nomeou os pecados estruturais da economia global e convocou uma conversão ecológica profunda e verdadeira.
Sua solidariedade com Piquiá de Baixo não foi pontual, foi coerente com todo o seu pontificado. Francisco olhou nos olhos dos que sofrem e se recusou a virar o rosto. Ensinou que justiça não é caridade: é reparação, é escuta, é mudança.
Hoje, Piquiá de Baixo segue construindo seu novo bairro. E leva consigo a marca de um Papa que acreditou na luta e abençoou os caminhos de um povo que jamais se rendeu.
Que a memória de Francisco nos inspire a continuar denunciando o que destrói e anunciando o que constrói vida. Porque, como ele disse: “Este sistema é insuportável. Os excluídos ainda esperam.”
Descanse em paz, Francisco.
Com amor e resistência, Piquiá de Baixo, Justiça nos Trilhos e tantos que seguem sonhando com um mundo mais justo.
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