“Sinto que somos parte de um só corpo que ainda sangra”, entrevista com Valdênia Paulino sobre a vivência em Brumadinho-MG

“Sinto que somos parte de um só corpo que ainda sangra”, entrevista com Valdênia Paulino sobre a vivência em Brumadinho-MG

Em janeiro de 2023 o crime socioambiental da Vale em Brumadinho, Minas Gerais (MG), completou 4 anos. Exatamente às 12h28 de uma sexta-feira, do dia 25 de janeiro de 2019, a barragem da Mina do Córrego Feijão, da mineradora Vale, rompeu na Região Metropolitana de Belo Horizonte, despejando 12 milhões de metros cúbicos de resíduos. 

Foi o maior crime de trabalho do Brasil, pelo número de vítimas: 272 mortes, sendo que ainda há 3 pessoas desaparecidas. Além das vítimas humanas, a tragédia-crime contaminou o ecossistema da região, em especial os rios Paraopeba e São Francisco, do qual o primeiro é um dos afluentes. 

A Vale também está envolvida com o rompimento da barragem do Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), que ocorreu em 2015.  Além de MG, a empresa também segue impactando vidas humanas e a natureza, prejudicando o bem viver de comunidades no Maranhão, como é o caso de Piquiá de Baixo, em Açailândia-MA, comunidade impactada pela Estrada de Ferro Carajás (EFC) – de responsabilidade da Vale – e pelo pólo siderúrgico. 

Além do impacto da mineração e da poluição gerada pelas empresas que cercam Piquiá de Baixo, a região de Açailândia também é impactada pelo agronegócio que intensifica os conflitos na região e que se utiliza da EFC para escoar a produção de soja e commodities. 

A cadeia de mineração causa impactos irreversíveis à vida humana e ao meio ambiente e que causam ainda mais indignação pela impunidade. Em todas as situações citadas, as empresas tentam eximir-se de suas responsabilidades. 

Desde 2020 a Justiça nos Trilhos (JnT) participa de atividades e mobilizações em memória das vítimas da Vale em Brumadinho, esse ano, a JnT foi representada por três pessoas, nas quais estava Valdênia Paulino Lanfranchi, que é defensora de Direitos Humanos, Advogada, doutora em Serviço Social e Educadora Popular na JnT. 

Em brumadinho, Valdênia Paulino participou do seminário “4 Anos da Tragédia-Crime e os Impactos em Brumadinho e Municípios Mineradores”, na Faculdade ASA. Participou da “Carreata por Justiça”, que partiu do Cemitério Parque das Rosas, com uma parada no Cemitério Municipal (Brumadinho), participou também da celebração de uma missa no estacionamento central de Brumadinho que marcou a “IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho”, organizada pela equipe da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário. De lá, Valdênia e os presentes foram em caminhada até o letreiro da cidade, onde se somaram ao ato mensal em honra às 272 vítimas. 

Como educadora popular, Valdênia Paulino atua diretamente com as comunidades impactadas pela Vale no Maranhão, dentre elas, Piquiá de Baixo. Nesse sentido, ela foi convidada a nos contar sobre suas impressões diante da visita feita a Brumadinho este ano. 

Na entrevista, a advogada comenta sobre as conexões e diferenças entre as comunidades impactadas pela mineração em Minas e no Maranhão. 

Confira a entrevista na íntegra:

Repórter: Como você avalia os eventos que participamos? Esperava uma mobilização maior ou menor? Qual o impacto das homenagens para você que atua diretamente com pessoas impactadas pela Vale no Maranhão?

Valdênia Paulino: O evento integra o conjunto de ações que visam a reparação integral perseguida pelas famílias das vítimas e pela sociedade, também vítima da mineração. Foi uma grande mobilização envolvendo familiares das vítimas, representantes de organizações e movimentos sociais locais, nacionais e internacionais, comunicadores, bem como religiosos indígenas, de matrizes africanas e cristãs. Contudo, esperava a presença de mais moradores da cidade. No decorrer dos dois dias de atividades e com as saudações de comerciantes e moradores durante a Romaria, pude compreender que essa ausência está relacionada ao minério-dependência tão presente no município de Brumadinho. 

Quanto ao impacto sentido por mim, enquanto representante da associação Justiça nos Trilhos que trabalha com comunidades impactadas pela mineração e agronegócio no estado do Maranhão, o sentimento compreendeu dor, indignação, solidariedade, ânsia por justiça, sobretudo, uma grande conexão como se pertencêssemos a uma só família que sofreu e sofre com os impactos da mineração.

O lamento que não cala em meus ouvidos foi ouvir das famílias que além das três pessoas que não foram encontradas, nem mesmo nenhum fragmento, ainda faltam muitos outros corpos, pois muitas famílias encontraram apenas um antebraço, outras um dedo e elas clamam os corpos. Sinto que somos parte de um só corpo que ainda sangra, mas que vive pautado na utopia da JUSTIÇA.

Repórter: O que você leva de aprendizado para o Maranhão e para Piquiá de Baixo?

Valdênia Paulino: A vivência na celebração do 4º ano da tragédia de Brumadinho me trouxe como aprendizado a importância da simbologia para expressar as ações de resistência e a busca por justiça; a importância de envolver vários atores sociais (universidades, autoridades entre outros) na discussão coletiva sobre o caso central da luta por justiça em relação aos impactos da mineração; a relevância de criar agenda pública, como é o caso de algum ato todos os dias 25 de cada mês e a atividade de ano que é a Romaria. Penso que aqui no Maranhão, essas podem ser dicas importantes para fortalecer a nossa luta.

Repórter: Como você acha que a Justiça nos Trilhos pode conectar essas realidades de vidas impactadas pela mineração em Minas e no Maranhão?

Valdênia Paulino: Precisamos criar uma rede de famílias impactadas no Brasil, na América Latina e no mundo. Posso dizer que já começamos. Fizemos o convite para que familiares da associação venham nos visitar no Maranhão para conhecer como o impacto se dá aqui; conhecer as famílias das vítimas fatais atropeladas pelos trens da Vale e de outros acidentes ligados às empresas da cadeia da mineração. Penso que podemos ser protagonistas de uma iniciativa que, num futuro breve, estará conectada com outras coalizões de organizações sociais que estão na linha de frente nesta luta e em defesa dos direitos humanos e da natureza frente à mineração. Uma rede de famílias impactadas é fundamental nesse enfrentamento.

Repórter: Como a Vale pode ser responsabilizada por seus crimes no Maranhão? A JnT pode fazer o que exatamente para potencializar denúncias contra os crimes cometidos pela Vale? Quais crimes a Vale comete no Maranhão?

Valdênia Paulino: Estamos falando de responsabilização de uma empresa por crimes cometidos, ou seja, de crimes já previstos em lei. Assim, a responsabilização deve ocorrer em qualquer estado onde ela cometer os crimes. No caso do estado do Maranhão, há várias representações contra a empresa Vale, envolvendo vários municípios, seja no âmbito judicial como no administrativo. Essas representações versam sobre omissão no que tange a falta de passagens seguras nas comunidades atravessadas pela estrada de ferro Carajás; na ausência de proteção das ferrovias com muros com proteção anti ruídos; por indenizações em razão de mortes por atropelamentos de seus trens entre outras demandas. Também temos os TACs – termos de ajustamento de condutas e acordos administrativos no caso de Piquiá de Baixo, no município de Açailândia, no processo da construção do bairro para o reassentamento das 312 famílias. 

O que a Justiça nos Trilhos precisa potencializar é a visibilidade dessas ações e fazer isso de forma articulada com os parceiros que estão juntos nessas frentes. 

Repórter: Escreva aqui o que você acha que pode ajudar na produção da matéria. Escreva o que você acha importante ser mencionado. 

Valdênia Paulino: Gostaria que essa entrevista fosse publicada na íntegra.

Repórter: Para finalizar, fale para mim quem é a Valdênia Paulino para que quem não a conheça possa saber um pouco mais sobre você.

Valdênia Paulino: Vou resumir. Valdênia Paulino, é mulher negra, com ascendência indígena, filha da classe trabalhadora que aprendeu desde cedo que só é possível sobreviver com dignidade através da luta coletiva por um mundo capaz de superar o capitalismo, que só sobrevive com a exploração e a morte da classe trabalhadora – necropolítica.

Como a busca pelo conhecimento científico sempre foi uma necessidade e compreendendo-o como instrumento vital para a luta, fiz pedagogia, Direito, e fui para as pós-graduações na área do Direito e do Serviço Social. Agora, sigo buscando conhecimento na área do meio ambiente ligada ao direito. Aprendi desde as comunidades eclesiais de base, no movimento por moradia, na defesa das comunidades quilombolas e indígenas, na defesa da juventude negra e periférica e reafirmando na experiência com a Justiça nos Trilhos que a transdisciplinaridade é fundamental para a afirmação dos direitos. 

Nas palavras de Paulo Freire, não há saber ou área de conhecimento mais importante que outros, cada área, cada pessoa têm saberes importantes e o diálogo entre eles é o que produz o novo revolucionário. Hoje estou na equipe de fortalecimento comunitário da Justiça nos Trilhos aprendendo muito com as comunidades impactadas pela mineração e o agronegócio e compartilhando o que aprendi no decorrer de 40 anos de militância, com humildade, ousadia e esperança.

Galeria de fotos tirada durante a vivência:

Seminário “4 Anos da Tragédia-Crime e os Impactos em Brumadinho e Municípios Mineradores”, na Faculdade ASA.

Carreata por Justiça

Missa da IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho

Ato mensal em honra às 272 vítimas da Vale. 

Fotos: José Carlos Almeida

Jangada Água Viva: la autogestión como fuente de resistencia comunitaria

Jangada Água Viva: la autogestión como fuente de resistencia comunitaria

“Tenemos que cuidar los manantiales de Jangada. Tenemos que cuidar lo que queda. El agua siempre encuentra una manera de escapar de la suciedad que produce la minería, y eso es lo que me preocupa, porque todos podemos estar sin agua. El agua es tiene sabiduría y le dará una forma de vivir, incluso si está lejos de nosotros “. Así es como Silvio Lima, un jubilado de 74 años y residente que nació y aún vive en Jangada, en la zona rural de Brumadinho (MG), comenzó su discurso en el evento “Valorando la memoria para la acción actual: la verdad a través de las aguas y la vida – La historia de la resistencia a la minería en Brumadinho 2010-2019 ”, realizada en colaboración con la Campaña Janeiro Marrom, que también rindió homenaje a las 272 víctimas fatales del mayor crimen socioambiental cometido por Vale en Brasil.

La preocupación del Sr. Silvio es la misma que la de las 200 familias que viven en la comunidad Jangada, ubicada a unos 15 km de la presa de relaves del Córrego do Feijão, en Brumadinho. Después de un año del crimen que devastó gran parte de la fauna y flora de la región bañada por la cuenca del río Paraopeba, 48 ciudades, un promedio de 1.300 millones de habitantes, siguen con la utilización del agua del río suspendido. El problema del agua en Minas Gerais es un tema ampliamente abordado por comités y asociaciones que aseguran el buen vivir de las comunidades afectadas por la cadena minera en el estado.

Antes de la contaminación con relaves minerales, el río Paraopeba era responsable del 30% del suministro total de la Región Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), y el otro 70% lo abastecía la cuenca del río das Velhas. En enero de 2019, el Comité de la cuenca del río rio das Velhas advirtió sobre los riesgos: hay alrededor de 70 presas de relaves a lo largo del curso del río, 40 de las cuales están en riesgo de ruptura, lo que amenaza el agua potable para beber, cocinar y otras actividades diarias básicas de 5,5 millones de personas, en la tercera región metropolitana más grande del país.

En los últimos cuatro años, Vale devastó el río Doce y el río Paraopeba en Minas Gerais, extendiendo escenas de destrucción en todo Brasil y el mundo. Existen graves riesgos de contaminación de otro río en el estado de Minas Gerais, uno de los mayores afluentes del río São Francisco, el río das Velhas.

Según los datos de la clasificación de la Agencia Nacional de Minería (ANM), Brasil tiene un promedio de 200 presas con alto potencial de daños. Minas Gerais es el estado con más presas con daños potenciales considerados altos. Entre los casi 200 catalogados, 132 están en el estado. Para el resultado, el análisis toma en cuenta las pérdidas de vidas humanas y los impactos sociales, económicos y ambientales en caso de una interrupción. En el informe, se consideró que la presa I del Córrego do Feijão en Brumadinho era de bajo riesgo, lo que demuestra que no hay forma de medir con precisión qué presas son realmente seguras y la devastación que puede causar una violación.

La comunidad Jangada y el Movimiento Águas e Serras de Casa Branca, que han estado monitoreando las operaciones del Complejo Paraopeba de Vale desde 2010, reafirman el proceso de superación después de la violación criminal de la presa en Brumadinho. “Nuestra agua no es negociable, nuestras vidas no están a la venta. También hemos estado defendiendo el derecho a decir no a la minería durante años ”, dice Carolina de Moura, coordinadora de la Associação Comunitária de Jangada, una granjera, periodista y residente de la región.

Lugar donde está viva la memoria del agua

La red de suministro de agua de Jangada se construyó y se administra de manera comunitaria. Históricamente, hace más de 100 años, antes de que una compañía minera llegara a la región, la población captura y distribuye agua para su consumo diario en los manantiales de Córrego da Jangada. Hay al menos seis manantiales que sufren serias amenazas a medida que avanza la minería. La comunidad hoy tiene un gran manantial, con un caudal de 62 litros por segundo (90 metros cúbicos por hora).

Los residentes se organizan a través de la Asociación de la Comunidad Jangada, fundada en 2007. La historia de la defensa de las aguas y las montañas en la región ha sido dirigida por un colectivo de personas y grupos, y no solo por la Asociación Jangada. En algunos momentos, el enfrentamiento se ha llevado a cabo más ampliamente por el Movimiento Águas e Serras de Casa Branca, articulado con otros grupos y organizaciones en Brasil y en el extranjero.

“Tenemos como foco central la defensa del agua como un derecho humano y esencial para la vida. En medio de un trauma intenso y mucho dolor, nos vimos obligados a ampliar nuestra agenda, y ahora también trabajamos para la Verdad, la Justicia, la Reparación Integral y las Garantías de No Repetición. Queremos que nadie, en ninguna parte del mundo, pase por lo que estamos pasando ”, dijo Carolina en una entrevista exclusiva para la Campaña Agua para los Pueblos. Además de la influencia política con las instituciones de justicia y las agencias de licencias, algo relevante en la historia de la organización de los residentes es el trabajo de la cultura y la educación popular: Tardes Festivas para las Aguas y las Montañas, cine en la plaza, teatro en la escuela, seminarios y debates públicos.

Según Carolina de Moura, quien ha coordinado los frentes de trabajo de la Asociación, desde 2013, después de que la comunidad Jangada hizo un trabajo de defensa insistente con el Ayuntamiento de Brumadinho y adquirió el suministro de materiales para la renovación de la red de distribución de agua, los residentes, de manera organizada, controlan la calidad del agua. Sr. Silvio es responsable de mantener el área de captación. “Este fue un gran logro, ya que pudimos colocar tuberías más gruesas, lo que mejoró significativamente la llegada de agua a las casas de las personas”, dice.

Positivamente, la autogestión del agua en la comunidad Jangada puede considerarse una fuente de inspiración para otras comunidades, que también enfrentan impactos mineros en Brasil. Cada organización comunitaria en torno al cuidado de los manantiales, que pueden ser destruidos con la cadena minera en el estado, ha fortalecido la conciencia de la ecología integral y la importancia de la organización popular. Para ellos, la autogestión comunitaria del agua significa autonomía sobre un elemento que es esencial para la supervivencia. “No somos rehenes de las autoridades públicas ni de ninguna compañía para la distribución de agua en el vecindario”, dicen los residentes en sus reuniones periódicas.

“Tengo la impresión de que las personas desconocen que la gestión de la distribución del agua se puede hacer de esta manera. Esto está previsto en la Ley de Pautas Básicas de Saneamiento (Ley Federal 11.445 / 2007). Creo que nuestra experiencia muestra de alguna manera la importancia de que las personas cuiden su territorio y tomen iniciativas colectivas para resolver por sí mismas algunos de sus problemas ”, agrega Carolina.

“Luchar por la defensa del agua, de la gente y de la Casa Común es necesario, digno y gratificante”.

“Creo que nuestra historia es inspiradora porque no nos rendimos. Tuvimos problemas con la red de distribución de agua y luchamos hasta que logramos construir una nueva red. Incluso sabiendo que Vale es un gigante y actúa de manera inescrupulosa para alcanzar sus intereses, no nos intimidamos y luchamos incansablemente para evitar renovaciones de licencias ambientales y proyectos de expansión del Complejo Paraopeba. Las derrotas que sufrimos son el resultado de la irresponsabilidad y la ineficiencia de quienes tienen el deber de cuidar el interés colectivo ”, reafirma Carolina.

Para los residentes de Jangada y Casa Branca, la comunidad y la organización popular han sido una importante herramienta de curación. “Después del trauma en el que vivimos, las escenas de guerra y terror que enfrentamos, el doloroso y eterno anhelo por todas las vidas que perdimos y de la paz y la tranquilidad que desaparecieron, continuamos, día a día, reinventándonos para transformar el duelo en lucha. Nos reunimos, debatimos, desahogarnos, nos apoyamos mutuamente para fortalecer nuestros afectos y seguir adelante ”, agrega.

Y con el apoyo técnico de los aliados, especialmente el Movimiento para las Serras y Aguas de Minas (MovSAM) y el Movimiento para la Preservación de Serra do Gandarela, los residentes se fortalecieron y comenzaron a comprender en el proceso que no es posible conciliar la expansión de las actividades mineras con la garantia de seguridad del agua. El mineral de hierro y el agua están en la misma capa geológica: el cuadrilátero de hierro también es un cuadrilátero acuífero. En medio de la explosión de una grave crisis climática y del agua, cuyas tendencias para el futuro no son alentadoras, los manantiales subterráneos son joyas invaluables para la sociedad. “Ya está claro tanto desde el punto de vista científico (teórico y analítico) como empírico (práctico): se preservan los manantiales o la minería expande sus actividades. Los dos son incompatibles, el consenso no es posible, es uno u otro, es una disputa territorial. Mi territorio, mi cuerpo. La humanidad necesita ser consciente de que está haciendo una elección. Defiende tu vida. Defiende el agua ”, concluye y pide coordinación.

Jangada Água Viva: Autogestão como fonte de resistência comunitária

Jangada Água Viva: Autogestão como fonte de resistência comunitária

“Temos que cuidar das nascentes de Jangada. Temos que cuidar do que ainda resta. A água sempre arruma um jeito para correr livre dessas sujeiras que a mineração produz, e é isso que me preocupa, porque pode ser que fiquemos todos sem água. A água é ‘sabida’ e vai dar um jeito de viver, mesmo que seja longe de nós”. É assim que o aposentado de 74 anos, Silvio Lima, morador que nasceu e vive até hoje em Jangada, zona rural de Brumadinho (MG), iniciou seu discurso no evento “Valorizando a Memória para ação presente: a Verdade pelas Águas e pela Vida – A história de resistência à mineração em Brumadinho 2010-2019”, realizado em parceria com a Campanha Janeiro Marrom, que também homenageou às 272 vítimas fatais do maior crime socioambiental, cometido pela Vale no Brasil. 

A preocupação de seu Silvio é a mesma das 200 famílias que moram na comunidade de Jangada, localizada a cerca de 15 km da barragem de rejeitos do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Após um ano do crime que devastou grande parte da fauna e flora da região banhada pela bacia do Rio Paraopeba, 48 cidades, uma média de 1,300 milhão de habitantes, seguem com o uso da água do rio suspensa. O problema hídrico em Minas Gerais é assunto bastante abordado pelos comitês e associações que zelam pelo bem viver das comunidades afetadas pela cadeia da mineração no estado.

Antes da poluição com rejeitos de minério, o Rio Paraopeba era responsável por 30% do total de abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), sendo os outros 70% abastecidos pela bacia do Rio das Velhas. Em janeiro de 2019, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas alertou sobre os riscos: há em torno de 70 barragens de rejeitos ao longo do curso do rio, sendo que 40 estão com risco de rompimento, o que ameaça a água potável para beber, cozinhar e as demais atividades básicas do cotidiano de 5 milhões e meio de pessoas, na terceira maior região metropolitana do país.  

Nos últimos quatro anos, a Vale devastou o rio Doce e rio Paraopeba em Minas Gerais, espalhando cenas de destruição por todo Brasil e pelo mundo. Há sérios riscos de poluição de mais um rio no estado mineiro, um dos maiores afluentes do Rio São Francisco, o Rio das Velhas.

De acordo com dados da classificação da Agência Nacional de Mineração (ANM), o Brasil tem em média 200 barragens com alto potencial de dano. Minas Gerais é o estado que mais tem barragens com potencial de dano considerado alto. Entre as quase 200 catalogadas, 132 estão no estado. Para o resultado, a análise leva em conta perdas de vidas humanas e impactos sociais, econômicos e ambientais em caso de rompimento. No relatório, a barragem I do Córrego do Feijão em Brumadinho era considerada de risco baixo, o que demonstra que não há como mensurar de forma exata quais barragens estão realmente seguras e as devastações que um rompimento pode causar. 

A comunidade de Jangada e o Movimento Águas e Serras de Casa Branca, que atuam no monitoramento das operações do Complexo Paraopeba da Vale desde 2010, reafirmam o processo de enfrentamento se fortalecendo após o criminoso rompimento da barragem em Brumadinho. “Nossa água é inegociável, nossas vidas não estão à venda. Há anos também defendemos o direito de dizer Não à mineração”, afirma Carolina de Moura, coordenadora da Associação Comunitária de Jangada, agricultora, jornalista e moradora da região. 

Lugar onde a memória da água é viva 

A rede de abastecimento de água da Jangada foi construída e é administrada de forma comunitária. Historicamente, há mais de 100 anos, antes de qualquer mineradora chegar à região, a população capta e distribui a água para seu consumo diário nas nascentes do Córrego da Jangada. São pelo menos seis nascentes que sofrem sérias ameaças com avanço da mineração. A comunidade hoje possui um manancial de porte, com vazão de 62 litros por segundo (90 metros cúbico por hora).

Os moradores se organizam por meio da Associação Comunitária de Jangada, que foi fundada em 2007. A história de defesa das águas e serras na região tem sido protagonizada por um coletivo de pessoas e grupos, e não apenas pela Associação da Jangada. Em alguns momentos o enfrentamento vem sendo realizado de forma mais ampliada pelo Movimento Águas e Serras de Casa Branca, articulado com outros grupos e organizações do Brasil e do exterior. 

“Temos como pauta central a defesa da água como direito humano e essencial à vida. Em meio a um trauma intenso e muita dor, fomos obrigados a ampliar nossa pauta, e agora trabalhamos também por Verdade, Justiça, Reparação Integral e Garantias de Não Repetição. Queremos que ninguém, em lugar nenhum do mundo, passe pelo o que estamos passando,” destacou Carolina em entrevista exclusiva para a Campanha Água Para os Povos. Além da incidência política junto às instituições de justiça e órgãos licenciadores, algo relevante na história da organização dos moradores é o trabalho de cultura e educação popular: Tardes Festivas pelas Águas e Serras, cinema na praça, teatro na escola, seminários e debates públicos. 

Segundo Carolina de Moura, que coordenada as frentes de trabalho da Associação, desde 2013, após a comunidade de Jangada ter feito um insistente trabalho de incidência junto à Prefeitura Municipal de Brumadinho e ter adquirido o aporte de materiais para a reforma da rede de distribuição de água, os moradores, de forma organizada, fazem o controle de qualidade da água. Seu Silvio é um dos responsáveis pela manutenção da área de captação. “Isso foi uma grande conquista, pois conseguimos colocar canos mais grossos, o que melhorou significativamente a chegada de água na casa das pessoas”, exalta. 

Positivamente, a autogestão da água na comunidade de Jangada pode ser considerada fonte de inspiração para outras comunidades, que também enfrentam impactos da mineração no Brasil. Toda organização da comunidade em torno do cuidado com as nascentes, que podem ser destruídas com a cadeia da mineração no estado, tem fortalecido a consciência de ecologia integral e da importância da organização popular. Para eles, a autogestão comunitária da água significa autonomia sobre um item que é fundamental para a sobrevivência. “Não somos reféns do poder público nem de nenhuma empresa para a distribuição de água do bairro”, afirmam os moradores em seus encontros periódicos. 

“Tenho a impressão de que as pessoas não sabem que a gestão da distribuição da água pode ser feita dessa forma. Isso está previsto na Lei de diretrizes do saneamento básico (Lei Federal 11.445/2007). Creio que nossa experiência mostra de alguma forma a importância de as pessoas cuidarem do seu território e tomarem iniciativas coletivas para solucionar por elas mesmas alguns dos seus problemas,” completa Carolina. 

“Lutar pela defesa da água, das pessoas e da Casa Comum é algo necessário, digno e gratificante.”

“Creio que nossa história inspira porque nós não desistimos. Tínhamos problemas na rede de distribuição de água e batalhamos até conseguir construir uma nova rede.  Mesmo sabendo que a Vale é gigante e atua de maneira inescrupulosa para atingir seus interesses, nós não nos intimidamos e lutamos incansavelmente para impedir as renovações de licenças ambientais e projetos de expansão do Complexo Paraopeba. As derrotas que sofremos são resultado da irresponsabilidade e ineficácia de quem tem o dever de cuidar do interesse coletivo”, reafirma Carolina. 

Para os moradores de Jangada e Casa Branca, a organização comunitária e popular tem sido uma importante ferramenta de cura., “Depois do trauma que vivemos, das cenas de guerra e terror que enfrentamos, da doída saudade eterna de todas as vidas que perdemos e da paz e do sossego que desapareceram, nós seguimos, dia a dia, nos reinventando para transformar o luto em luta. A gente se reúne, debate, desabafa, se apoia, fortalece os afetos e segue em frente”, completa.  

E com o apoio técnico de parceiros, especialmente o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) e o Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela, os moradores se fortaleceram e passaram a compreender no processo que não é possível conciliar a expansão de atividades mineradoras com a garantia da segurança hídrica. O minério de ferro e a água estão na mesma camada geológica: o quadrilátero ferrífero é, também, quadrilátero aquífero. Em meio à explosão de uma grave crise hídrica e climática, cujas tendências para o futuro não são animadoras, as nascentes subterrâneas são preciosidades de valor inestimável para a sociedade. “Já está claro tanto do ponto de vista científico (teórica e analítica) como empírico (prática): ou os mananciais são preservados ou a mineração expande suas atividades. As duas coisas são incompatíveis, não é possível o consenso, é um ou outro, é uma disputa territorial. Meu território, meu corpo. A humanidade precisa estar ciente de que está fazendo uma escolha. Defenda sua vida. Defenda a água”, conclui e clama a coordenação.