De 8 a 10 de junho, a Justiça nos Trilhos (JnT) participou de um intercâmbio entre comunidades afetadas pela mineração de lítio. O evento foi organizado pela Rede Igrejas e Mineração (RyIM) e pelo Centro de Ecología y Pueblos Andinos, em Oruro, na Bolívia.
Visitamos o Salar de Coipasa, uma das maiores áreas de sal na Bolívia, que está ameaçada por projetos de mineração de lítio. Representantes de organizações e comunidades do Peru, Argentina, Brasil e Bolívia também participaram do intercâmbio.
Segundo Larissa Pereira Santos, coordenadora política da JnT, conhecer outras comunidades afetadas pela mineração é essencial para construirmos juntos resistências e estratégias de proteção da natureza. “A exploração de lítio é violenta e desumana, assim como a de outros minérios na Amazônia brasileira.”
O lítio é visto hoje como essencial para a transição energética, usado em baterias de carros híbridos e elétricos, entre outros produtos. No entanto, a mineração de lítio tem sérios impactos na natureza e nas comunidades, como o uso excessivo de água e a produção de resíduos tóxicos. Além disso, as empresas envolvidas, muitas vezes, não respeitam os direitos das populações locais.
No final de maio, veio a público um documento, supostamente produzido pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico e Programas Estratégicos (SEDEPE) do Maranhão, no qual o governo maranhense afirma que organizações sociais do estado estariam divulgando informações “inadequadas” sobre um projeto porto-ferroviário planejado no estado. O documento, escrito em alemão, não está assinado mas leva o timbre do governo.
O projeto em questão, conhecido como Grão-Pará Maranhão (GPM), prevê a construção de um porto de águas profundas na ilha de Cajual, no município de Alcântara, e de uma ferrovia de 520 km de extensão, que atravessaria 22 municípios entre Alcântara e Açailândia. A obra contaria com a participação da empresa ferroviária estatal alemã, Deutsche Bahn (DB), e incluiria ainda um HUB de hidrogênio verde, sobre o qual, no entanto, não há detalhes no material promocional das empresas.
Desde que tomaram conhecimento da intenção da GPM e da DB de firmarem parceira para a realização deste projeto (divulgada em vídeo pelo Ministro da Integração e Desenvolvimento Regional, Waldez Góes, e pelo governador do Maranhão, Carlos Brandão, em 2023), organizações como Justiça nos Trilhos (JnT), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conselho Indigenistas Missionário (CIMI), Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (MABE) e outras iniciaram uma busca por dados e informações oficiais junto a órgãos de governo, e documentações dos próprios empreendedores. O temor – justificado, como vieram a constatar -, é que tanto a ferrovia como o porto tenham um grande impacto ambiental e violem direitos de comunidades e territórios tradicionais, como quilombolas, indígenas e pescadores, além de assentados da reforma agrária.
De acordo com a documentação a qual as organizações tiveram acesso, de fato o projeto portuário pretende se instalar sobre 87% do território quilombola da ilha de Cajual, que pertence à APA das Reentrâncias Maranhenses (e é considerada um sítio RAMSAR), destruindo tanto uma vasta área de manguezais e vegetação nativa quanto as áreas de moradia, agricultura e pesca das comunidades quilombolas locais. Já a ferrovia atravessaria duas áreas quilombolas – Quilombo Tanque de Valença e Quilombo Alcântara, tangenciando uma terceira, Aguiar – e 16 assentamentos de reforma agrária, e afetaria seis terras indígenas – Awa, Caru, Pindaré, Alto Turiaçu, Arariboia e Akroá Gamella -, das quais Awá, Caru, Alto Turiaçu e Arariboia têm presença oficialmente comprovada de grupos indígenas em isolamento voluntário.
“Após análise da documentação que conseguimos acessar, chegamos à conclusão de que o projeto GPM é inviável do ponto de vista ambiental e social. Muitas comunidades com as quais trabalhamos seriam severamente impactadas, mas descobrimos também que a maioria nunca ouviu falar do projeto. Ou seja, até o momento, nos parece que apenas a comunidade quilombola do Cajual foi abordada, e levada a assinar um documento de consentimento com o projeto. De resto, nem o governo do Maranhão, que se declara aliado do empreendimento, nem a GPM sequer contataram as comunidades que seriam impactadas pela ferrovia”, explica Mikaell Carvalho, coordenador da JnT. “Diante disso, avaliamos que é importante que a estatal alemã Deutsche Bahn saiba onde está se metendo. Por isso, organizamos várias atividades na Alemanha para fomentar um debate público envolvendo organizações sociais, parlamentares, ministérios e a própria estatal, além da população em geral. Na nossa opinião, não faz sentido o governo alemão dizer que defende o combate a violações de direitos humanos e crimes ambientais no Brasil – financiando, inclusive, o Fundo Amazônia – enquanto a DB faz parte de um projeto que aprofundará exatamente estes problemas”.
Foi ao tomar conhecimento de uma destas atividades, ocorrida em Berlim no final de maio, que o governo do Maranhão afirma ter produzido o documento escrito em alemão, no qual tenta contestar os dados apresentados pelas organizações sociais.
Incongruências
No referido documento, o governo maranhense diz inicialmente que “neste momento, o projeto não incluirá a construção de uma ferrovia ou de um centro de energia”. Nos parágrafos seguintes, porém, afirma a existência da ferrovia, ponderando apenas que seu trajeto ainda não estaria definido. Em seguida, contradizendo esta informação, declara que a linha férrea “está planejada em uma zona antropogênica que evita reservas naturais, vilas e assentamentos”, que “foi identificada pelo Ministério dos Transportes (…) como uma das sete ferrovias prioritárias” e que consta do “estudo do Banco Mundial ‘Maximising the Logistics Efficiency of the North South Railway’ e está sendo descrita pela INFRA S/A como uma variante com baixíssimos impactos socioecológicos”. Já sobre a construção do HUB de energia verde, cuja existência foi negada no início do informe, consta posteriormente que “será construído um HUB de hidrogênio verde, que contribuirá para a descarbonização da indústria, da agricultura e do transporte” no Brasil e na Alemanha.
Por outro lado, o documento também garante que, em todos os estágios do projeto, será respeitado o direito à consulta livre, prévia e informada das comunidades tradicionais afetadas, de acordo com a Convenção 169 da OIT. “Depois o governo diz que a GPM firmou um contrato com a Associação Quilombola da Ilha do Cajual, que daria carta branca à construção do porto. Como fizeram esse contrato sem fazer a Consulta? A Associação do Cajual é coautora, inclusive, do Protocolo de Consulta das comunidades quilombolas de Alcântara, que especifica os critérios para realização deste processo. Que tipo de coerência é essa do governo, quando se manifesta desta forma em documento público? ”, questiona o advogado Danilo Serejo, morador de Alcântara.
Para Mikaell Carvalho, da Justiça nos Trilhos, as organizações sociais consideraram grave que o governo do Maranhão tenha afirmado em documento público que as informações divulgadas pela JnT e outros “são inadequadas” e “que prejudicam a todos e, em última análise, às pessoas mais necessitadas”. “Construímos conjuntamente uma resposta e este documento, que protocolamos presencialmente na SEDEPE em São Luís. Protocolamos uma versão em português e uma em alemão, já que o informe que recebemos está em alemão e queremos garantir que o governo entenda exatamente o que estamos dizendo. Estamos demandando que disponibilize todos os documentos, estudos, evidências científicas e comprovações que corroborem suas afirmações, porque da nossa parte tudo que estamos dizendo tem fontes oficiais. Nós realmente não temos medo do debate franco e democrático”, conclui o coordenador da JnT.
Para Flávia Nascimento, jovem liderança da comunidade de Piquiá de Baixo, no Maranhão, Brasil, viajar pelo território do Vale do Orbiel, na França, significa reconhecer que ela e sua comunidade não estão isoladas na luta. “Trazer um pouco da minha comunidade para esse território significa unir nossas lutas e forças. Às vezes, achamos que somos únicos e estamos sozinhos”, reflete ela.
Durante os dias 26 e 28 de maio, jovens defensores do Brasil, que vivem em territórios violados ou acompanham comunidades nessa situação, visitaram o Vale do Orbiel, uma localidade francesa afetada pelo extrativismo mineral. Há anos, essa população lida com a contaminação e doenças em suas terras, agravos à saúde, além de enfrentar o modelo econômico predatório do Norte Global.
Essa ação ocorreu no âmbito da Campanha de Desinvestimento no setor da Mineração, promovida pela Rede Igrejas e Mineração, juntamente com a organização de direitos humanos Justiça nos Trilhos (JnT) e suas atividades de defesa para enfrentar e pôr fim à violência na Amazônia brasileira, em parceria com a Cáritas França, com quem reforça os diálogos Norte-Sul.
Para Mikaell Carvalho, membro da JnT, esse intercâmbio com as comunidades afetadas na França o faz pensar que as línguas não são um impedimento para se encontrarem, e que o encontro é uma parte fundamental da luta. Para o defensor, esse isolamento a que se quer submeter as comunidades é intencional.
Durante esses dias de intercâmbio entre as comunidades atingidas, surgiram reflexões que nos permitirão continuar a luta contra essas violações. “O que nos impede de nos reunirmos de forma mais ampla é justamente a violação de direitos, pois tentam nos isolar em nossos próprios territórios. Nos unirmos é essencial”, disse ele.
Intercâmbio no Vale do Orbiel (França).
Para Gérard, representante do Vale do Orbiel, o intercâmbio é importante porque nos permite conhecer a experiência dos outros, saber como agem, como reagem, qual é o seu contexto, o seu universo.
Para Milha Wainer, uma das facilitadoras deste encontro graças à Cáritas França, o encontro também ajuda a perceber e a tocar no fato de que o modelo que sacrifica vidas e territórios, que desapropria e saqueia, também está presente no Norte Global. Há comunidades que estão pedindo reparação pela contaminação de seus territórios.
Mikaell, do Brasil, sublinha que o modelo que pressiona os territórios é predatório. “Esse modelo econômico olha para os nossos territórios como um espaço de exploração desenfreada e não os vê como eles realmente são: espaços de vida, partilha, comunhão e celebração”.
Conferência na sede da Cáritas, França.
O intercâmbio permitiu unir o sentido das lutas, reconhecer o inimigo dentro do modelo que extrai e despossui, e promover uma unidade que transcende as fronteiras. Para Flávia Nascimento, percorrer as localidades afetadas na França amplia as perspectivas. Ao retornar aos territórios em resistência, ela afirma: “Isso está muito relacionado com a realidade, tudo é muito semelhante, tudo está muito interligado”.
As lutas e os sofrimentos também estão muito interligados. Os diálogos e a unidade devem ser entre territórios, intergeracionais e entre povos do norte e do sul.
Texto pela ‘Campanha de Desinvestimento em Mineração’ e ‘Rede Igrejas e Mineração’.
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