Piquiá da Conquista: Entrega de chaves marca vitória histórica contra a poluição industrial
22 de outubro, 2024

Fruto de uma luta popular de quase vinte anos, chega o dia da cerimônia de entrega das novas moradias e seguem as reivindicações por reparação integral

Na sexta-feira, 25 de outubro, às 15h, um marco na luta socioambiental do Brasil será registrado com a entrega das chaves do reassentamento Piquiá da Conquista, em Açailândia (MA). Este processo, que ganhou fôlego durante o primeiro mandato do governo Lula e se conclui agora com seu retorno, representa uma vitória significativa para 312 famílias que, há anos, enfrentam as graves consequências da poluição causada pela mineração e siderurgia. O evento contará com a presença do Ministro das Cidades, Jader Filho.

O reassentamento Piquiá da Conquista, situado a cerca de 6 km do bairro Piquiá de Baixo, é resultado de uma intensa mobilização comunitária iniciada nos anos 2000. Expostos à poluição atmosférica, sonora, e à contaminação do solo e da água, os moradores sofreram sérios problemas de saúde e impactos ambientais severos. Em 2008, a comunidade decidiu que o reassentamento era a única alternativa viável para recuperar a dignidade e garantir um futuro seguro para as gerações seguintes.

Um momento de celebração e reivindicação

A cerimônia de entrega das chaves será um momento de comemoração, mas também de uma nova etapa de lutas. “Embora seja uma vitória, essa ainda não é uma reparação integral. A luta agora é pela isenção das prestações das casas, pois moradia a gente já tinha; e que o terreno de Piquiá de Baixo se transforme em um Parque Ambiental para cuidar da natureza e da nossa memória, incluindo o cemitério da comunidade, escola e outros espaços, e isso seja uma símbolo de resistência, superação e de não repetição”, ressalta Mikaell Carvalho, coordenador da JnT, nascido e criado na comunidade de Piquiá de Baixo.  

Ilustração-Memória Piquiá de Baixo – Uriel Menezes


As negociações para a consolidação do reassentamento envolveram a Associação Comunitária dos Moradores de Piquiá (ACMP), Justiça nos Trilhos (JnT), Missionários Combonianos, Caixa Econômica Federal, governos estadual e federal, além das empresas responsáveis pela poluição, como a Vale S.A. e siderúrgicas locais. O planejamento do novo bairro contou com a assessoria da Usina CTAH e a participação de organizações internacionais, como a Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH). Somente após longas negociações e pressão popular contínua, os recursos foram obtidos, permitindo a concretização do projeto.

Autogestão: Um marco no processo

A autogestão foi um elemento central para o sucesso do reassentamento, permitindo à comunidade assumir o protagonismo. Sem políticas públicas específicas no Brasil para reassentamentos de comunidades impactadas por grandes projetos industriais, a ACMP liderou o desenvolvimento do projeto, com recursos do programa ‘Minha Casa Minha Vida – Entidades’, complementados por contribuições financeiras das empresas e apoio dos governos estadual e municipal.

Com o apoio técnico da Usina CTAH, o projeto urbanístico e habitacional foi elaborado e submetido à Caixa Econômica em 2013, sendo aprovado em 2015 pelo Ministério das Cidades. Kaya Lazarini, arquiteta da Usina, destaca a importância da autogestão: “Apesar das limitações do programa habitacional, a comunidade conseguiu moldar o projeto de acordo com suas necessidades, fortalecendo o senso de pertencimento.”

Esse modelo de gestão coletiva não só viabilizou a construção física das casas, como também fortaleceu a autonomia da comunidade, garantindo que o novo bairro refletisse sua cultura e prioridades. Em 2014, o projeto foi reconhecido internacionalmente com uma menção honrosa no Concurso Regional de Alternativas para Vivienda Popular, no Fórum Social Urbano Alternativo e Popular, em Medellín, Colômbia.

A participação da assessoria técnica da Usina, em parceria com a ACMP e a JnT, no processo de luta pelo reassentamento da comunidade foi concluída em outubro de 2020, em comum acordo entre todas as partes.A obra passou a ser conduzida em regime de cogestão. A empresa CAP Engenharia, sediada em São Luís (MA), assumiu a responsabilidade pela execução do projeto, sob a supervisão e inspeção direta da ACMP, garantindo que os interesses e necessidades da comunidade fossem respeitados durante a finalização do reassentamento.

Desafios emocionais e a transição para Piquiá da Conquista

Apesar da conquista, o processo de adaptação ao novo bairro traz desafios emocionais. Para muitos moradores, o reassentamento significa deixar para trás quintais, rio e árvores que, embora afetados pela poluição, faziam parte da vida cotidiana e das memórias de Piquiá de Baixo. A ligação com a terra, os espaços comunitários e a natureza é profundamente enraizada, e esse rompimento identitário provocado pelo deslocamento forçado gera cicatrizes difíceis de curar.

Uma moradora expressa esse sentimento: “Sabemos que é para o nosso bem, mas é doloroso deixar o lugar onde criamos nossos filhos, com nossos pés de fruta e nossas lembranças. Não podemos levar os quintais, o rio ou as árvores.”, Dona Raimunda, conhecida como Dona Doca.

Essas memórias e vínculos afetivos permanecem, mesmo com a mudança física, e o processo de adaptação vai além das questões materiais, exigindo tempo para a comunidade reconstruir suas rotinas e identidade em Piquiá da Conquista.

A luta pela memória e justiça ambiental continua

Com a inauguração de Piquiá da Conquista, a comunidade já vislumbra o próximo desafio: transformar o bairro Piquiá de Baixo em um Parque Ambiental. A mediação do Ministério Público visa garantir que áreas como o cemitério, a escola e algumas casas sejam preservadas, criando um espaço que atue como memorial vivo da resistência e das batalhas travadas por justiça ambiental.

A comunidade insiste que a reparação integral ainda está longe de ser alcançada. As empresas responsáveis pela degradação precisam ser responsabilizadas, e o Estado deve assumir seu papel de fiscalização para que a poluição na área total de Piquiá de Baixo seja controlada e mitigada. Embora 312 famílias tenham sido reassentadas, muitas outras continuam vivendo em Piquiá, ainda expostas à contaminação e necessitando de soluções urgentes.

Um exemplo para Açailândia (MA) e para o Brasil

Assinatura de Contratos em Piquiá da Conquista – 07/out/2024

A entrega das chaves em Piquiá da Conquista simboliza a força e a mobilização de uma comunidade que nunca se curvou diante da injustiça ambiental. “Esse momento é fruto de uma longa caminhada, mas não é o fim. A luta pela dignidade continua, e nossa história precisa ser lembrada. Dedicamos esta vitória ao primeiro presidente da nossa Associação Comunitária, o sr. Edvard Cardeal, que iniciou essa luta e, infelizmente, faleceu devido a problemas respiratórios. Como ele, muitas pessoas adoeceram ou nos deixaram por causa da poluição. Esta vitória é delas também!”, afirma Dona Tida, presidente da ACMP e uma das moradoras que será reassentada.

Assinatura de Contratos em Piquiá da Conquista – 07/out/2024

Um exemplo é Antônia Flávia Nascimento. Para ela, o falecimento de seu pai, Adelson Ferreira do Nascimento, em dezembro de 2020, torna esta conquista profundamente emocional para sua família. Adelson foi um dos que acreditaram no reassentamento e lutaram bravamente por ele. Para Antônia, receber as chaves representa mais do que garantir um novo lar – é uma forma de honrar o legado e o esforço de seu pai. “Essa vitória é dele também”, afirma. A memória de Adelson, assim como a de tantos outros que partiram durante essa longa batalha, permanece viva nessa conquista. 

Com as novas moradias, as famílias finalmente poderão viver longe do impacto direto da poluição. No entanto, as cicatrizes deixadas pela degradação ambiental em Piquiá de Baixo continuam a impulsionar a comunidade na busca por justiça plena. A entrega das chaves, embora seja uma grande vitória, também representa um chamado à continuidade da luta por reparações mais abrangentes. A comunidade mantém a esperança de transformar Piquiá de Baixo em um espaço de memória, de renascimento ambiental, e de apoio às famílias de Piquiá de Cima, que hoje enfrentam problemas semelhantes aos vividos em Piquiá de Baixo.

Evento de Assinatura de Contratos – Início de outubro de 2024

O evento, que marca a consolidação de um processo histórico, reforça que o reassentamento de Piquiá da Conquista não é apenas uma questão de moradia. Trata-se de uma resposta à violação de direitos básicos, à destruição ambiental e à luta incansável por um futuro onde comunidades como Piquiá não precisem escolher entre saúde e moradia.

Leia o histórico completo | Piquiá de Baixo: Uma história de luta, resistência e esperança rumo ao Reassentamento e à Reparação Integral: aqui.