Pior do que ser obrigado a deixar suas terras e abandonar suas raízes é não ter para onde ir quando isso acontece. Esta é a situação de quase todas as 10 mil famílias que moram em 11 cidades de três Estados, que serão atingidas pelo projeto de aproveitamento hidrelétrico de Marabá (PA).
A nova barragem, com capacidade para 2.160 megawatts de potência, deve começar a ser construída entre 2014 e 2015, para cumprir o cronograma da Empresa de Pesquisa Energética, que estipula funcionamento para o ano de 2021.
E enquanto nos gabinetes da Eletronorte e da Camargo Correia, os executivos fritam os miolos com equações que vão definir os custos e receitas para mais um grandioso empreendimento, nas comunidades que serão atingidas a ficha ainda não caiu: a maioria dos moradores segue sua rotina normal, vivendo e sobrevivendo do rio e das vazantes, sem se dar conta de que esse estilo de vida está com os dias contados.
Os debates em torno da construção de mais esta barragem, que integra um conjunto de obras de aproveitamento dos rios brasileiros, ainda são muito tímidos. Representantes de áreas indígenas, quilombolas e ribeirinhos sabem que o projeto será construído e se limitam agora a debater as compensações financeiras para os atingidos. Mas até isso é difícil.
Segundo o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), o grande problema é que no Brasil não existe um marco legal que defina o conceito de atingido; quem define quem é atingido e quanto cada um vai receber é o consórcio construtor, mas quem ganha a licitação para construir barragens é quem oferece o menor custo no quilowatt de energia. “Isso significa que as questões sociais e ambientais são reduzidas ao máximo”, alerta Rogério Hohn, coordenador do MAB em Marabá.
Para provar o que diz, o ativista denuncia que em todo o Brasil há pelo menos um milhão de atingidos por barragens e, desse total, nada menos de 700 mil nunca receberam qualquer tipo de indenização.
Existem casos emblemáticos de pessoas que foram despejadas de suas terras na década de 1980 para a construção da Usina Hidrelétrica der Tucuruí, que nunca receberam um tostão sequer, que hoje moram no Assentamento 1º de Março, em São João do Araguaia, e que agora (adivinhe) serão despejadas novamente por outra barragem.
O pior, segundo Hohn, é que quem denuncia esse tipo de situação é taxado como radical e contra o desenvolvimento. “Não somos contra a construção de hidrelétricas; somos contra o modelo de construção que existe no Brasil”, explica.
Desenvolvimento para quem?
O MAB explica que historicamente, no Brasil, o “negócio das barragens” tem sido muito lucrativo, sob vários aspectos. Primeiro porque pelo menos 80% das hidrelétricas são construídas com dinheiro público (leia-se BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – a partir de um recurso natural que pertence à nação).
Segundo porque, além de receber financiamento público, o consórcio construtor paga o empréstimo com o dinheiro da conta de energia, que é paga pelo consumidor. Aliás, ainda de acordo com o MAB, a tarifa brasileira é a quinta mais cara do mundo, mais onerosa até do que a de países cuja energia é térmica, que é uma energia mais cara.
Mas o catálogo de incoerências sociais não para por aí. Via de regra, os grandes consórcios construtores acabam aplicando noutros países os lucros obtidos a partir da energia hidrelétrica, enquanto as cidades atingidas pela construção desses empreendimentos são obrigadas a absorver o impacto populacional, que se intensifica nas ocupações urbanas, inchaço no sistema único de saúde e crescimento da violência.
Ao mesmo tempo, localidades próximas de barragens na Amazônia, como será o caso de Marabá, correm o grande risco de ficar sem energia elétrica. É o caso, por exemplo, de uma comunidade de 1.400 famílias de ribeirinhos que embora morem ao “pé” da Hidrelétrica de Tucuruí, ainda vivem à luz de vela. Isso acontece por conta do sistema de distribuição de energia existente no Brasil.
Remoção compulsória a troco de quê?
Quando se fala em construção de hidrelétricas, fala-se de milhares de hectares que serão inundados, engolindo casas, plantações, reservas indígenas e tudo que estiver no caminho do “progresso”.
No caso de Marabá, o centro histórico do município de São João do Araguaia será reduzido ao cume da igreja católica. Mas isso não é tudo. A localidade de Apinajés, também em São João, será mergulhada no esquecimento.
Uma tradicional colônia de pescadores, onde a população também explora as chamadas vazantes (roças que são cultivadas apenas no período de seca), será riscada do mapa e seus moradores “convidados” a procurar outro tipo de atividade, embora culturalmente nunca tenham sido preparados para isso.
Na Vila Espírito Santo, em Marabá, o paredão de concreto e aço vai rasgar a comunidade ao meio. Um lado vai virar barragem, o outro será canteiro de obras. Não vai ter espaço para ninguém morar.
Fatalmente, grande parte dos moradores vai acabar acumulando as periferias da cidade, aumentando a procura pelo aparelhamento do Estado: habitação, saúde, moradia, escolas. Mas terá o Estado capacidade para absorver toda essa demanda?
Já na Reserva Indígena Mãe Maria, em Bom Jesus do Tocantins, o prejuízo será considerável, pois a área a ser inundada é rica em caça e é lá também que fica a maior parte das árvores de onde são feitas as pontas de flecha.
Além disso, a aldeia já sofreu impactos de toda sorte: Estrada de Ferro Carajás, Rodovia BR-222, dois linhões da Eletronorte e agora uma linha de empresa de telefonia móvel. Trata-se da reserva indígena mais impactada do Brasil.
O paradoxo quilombola
Um dos casos de impacto que mais chamam atenção envolvendo a Hidrelétrica de Marabá é a Vila de São Vicente, uma ilha habitada por quilombolas no município de Araguatins, no Estado do Tocantins.
A peculiaridade do local reside no fato de que a comunidade está em pleno processo de reconhecimento jurídico pelo governo federal como Comunidade Quilombola. Mas, exatamente agora, essa comunidade será finalizada.
A informação foi repassada pelo sociólogo Cristiano Bento da Silva, que faz mestrado em Dinâmicas Territoriais da Amazônia, pela Universidade Federal da Amazônia (UFPA), e que tem estudado todos esses impactos.
Compensações irrisórias ou inexistentes
Quando se fala em remoção forçada de famílias de seu lugar de origem, em moldes que não foram vistos sequer no regime militar, pensa-se logo que tudo isso vai gerar uma indenização, para que as pessoas não deixem seus lares de mãos abanando. Mas nem sempre isso é garantido na prática.
Existem vários fatores que dificultam o pagamento de indenizações. O primeiro deles está ligado a um problema muito comum no sudeste do Pará e noutras parte da Amazônia: a falta de titulação das terras.
Sem esses documentos, o morador de área atingida pela barragem encontrará dificuldade para ter acesso a uma indenização justa, ao mesmo tempo em que será obrigado a deixar o seu lar.
Existem outros fatores além desse. Cristiano Bento observa outro ponto esquecido pelos consórcios construtores: “A história das pessoas naquele lugar nunca poderá ser indenizada. Isso nem entra nas discussões sobre indenização”.
Sem contar com o fato de que as pessoas não têm direito de dizer se querem ou não sair dali. Elas terão de ir embora e ponto final.
Para o município atingido as compensações também são ínfimas. A Prefeitura de Marabá receberá pouco menos de R$ 300 mil por ano do consórcio construtor, o que não dá nem R$ 25 mil por mês. Mas terá de conviver com hospitais inchados, ocupações urbanas e escolas superlotadas.
Exemplo bem próximo de problema social ocasionado por hidrelétrica está em Belo Monte, onde cinco mil famílias migraram de áreas atingidas para a periferia da cidade de Altamira. Quem é capaz de calcular esse tipo de impacto?
Prefeitura fiscalizará cumprimento de condicionantes
Ouvido pela reportagem, o prefeito João Salame disse que existe um grupo de estudo envolvendo a Eletronorte e representantes do município que está avaliando os impactos e as condicionantes do empreendimento.
“Nós também entendemos como absolutamente fundamental que as eclusas sejam construídas, que os impactos sejam mitigados, que se elabore um plano de desenvolvimento econômico-sustentável para o município a partir do empreendimento”, declarou o prefeito.
Ainda de acordo com ele, a nova barragem não pode cometer os mesmos erros que foram cometidos quando da construção da Hidrelétrica de Tucuruí, mas entende que é importante a geração de energia hidrelétrica porque é a fonte mais limpa que existe. “Desde que as condicionantes ambientais, sociais e econômicas sejam atendidas, não vejo problema”, afirma.
Os números frios da Hidrelétrica
A hidrelétrica de Marabá está planejada para ser construída distante 4 km a montante da Ponte Rodoferroviária do Tocantins. O custo da obra está estimado em R$ 12 bilhões, com um prazo de construção médio de oito anos.
Esta hidrelétrica terá capacidade de produção de 2.160 MW, tornando-se um aporte considerável para o Sistema Interligado Nacional. Em âmbito local fornecerá energia para empreendimentos siderúrgicos, ampliação das minas de ferro e cobre e projetos do parque de Ciência e Tecnologia de Marabá.
A hidrelétrica formará um lago 3.055 km² – bem maior do que o lago formado pela hidrelétrica de Tucuruí. Serão inundados 1.115 km² de terras (mais de 110 mil hectares de terras férteis).
O empreendimento atingirá 11 municípios em três estados: Pará (Marabá, São João do Araguaia, Bom Jesus do Tocantins, Brejo Grande do Araguaia, Nova Ipixuna, Palestina do Pará); Tocantins (Ananás, Esperantina e Araguatins) e Maranhão (São Pedro da Água Branca e Santa Helena).
A barragem atingirá indígenas, quebradeiras de coco babaçu, pescadores, assentados, ribeirinhos, moradores de povoados e das cidades.
MAB denuncia exploração predatória
A construção de barragens no Brasil, segundo o MAB, tem causado inúmeros impactos sociais e ambientais à população e ao meio ambiente. Segundo estudos, já se construíram mais de duas mil barragens no Brasil, expulsando mais de 1 milhão de pessoas de suas terras e alagando mais de 3,4 milhões de hectares de terras férteis.
Segundo estudos de viabilidade, prevê-se a construção de mais de 1.400 novas barragens até 2030, sendo que mais de 300 estão em solos amazônicos, para atender às empresas multinacionais.
“Essas barragens têm mostrado que a energia gerada serve para atender as grandes indústrias multinacionais instaladas aqui, que pagam 10 vezes a menos de tarifa que o povo brasileiro. A Hidrelétrica de Marabá também tem essa finalidade”, diz documento assinado pelo MAB.
Em lugar de gerar desenvolvimento, emprego e oportunidades para a região, significa gerar energia para as grandes indústrias de mineração da região e regiões mais desenvolvidas do país.
“E o povo só fica com os impactos e as migalhas desses projetos. São mais de 10 mil famílias que serão atingidas. E para onde vão essas famílias?” É a pergunta que o MAB faz.
Paraísos naturais: Tudo isso vai acabar
Quem mora em Marabá e municípios vizinhos, ou mesmo quem vem de fora da cidade ou do Estado, em busca de sossego nos meses de veraneio já descobriu o caminho das pedras, ou melhor: das praias. Tudo isso vai acabar.
Ao invés de atravessar o Rio Tocantins com destino à Praia do Tucunaré, o caminho é pela estrada de chão que margeia a Estrada de Ferro Carajás, seguindo na divisa do município de Bom Jesus do Tocantins. Depois de pouco mais de 20 km de viagem, basta virar à direita numa das várias entradas para se avistar o paraíso: são praias de água doce e límpida, que acolhem o veranista mais sossegado. Tudo isso vai acabar.
Ali existe um conjunto de praias denominadas de Sossego, Lençol, Cari e Cametauzinho, com uma pequena população ribeirinha que acolhe os turistas, aluga barracas de palha fincadas na areia e também oferece estacionamento sombreado para os motoristas mais preocupados com os veículos. Tudo isso vai acabar.
Eletronorte afirma que indenizações serão justas
Em Visita a Marabá, onde mantiveram audiência com vereadores, representantes da Eletronorte garantiram que os impactos sociomabientais provocados pela construção da Hidrelétrica de Marabá, que deve iniciar em 2014, serão minimizados, a começar pela indenização dos atingidos pelo projeto.
Segundo o superintendente de Meio Ambiente da Eletronorte, Antônio Coimbra, a intenção é manter na medida do possível a rotina e a cultura dos ribeirinhos, que serão atingidos pela barragem: “Esse tem que ser um objetivo que a gente tem que alcançar. Ou seja: não se pode chegar, impactar e deixar a pessoa numa situação ruim. Esse é um objetivo que a gente te que seguir, por isso estamos com esse diálogo”.
Perguntado se a Eletronorte vai conseguir alcançar essa meta, já que até hoje, três décadas depois, ainda há problemas relacionados à indenização de atingidos pela hidrelétrica de Tucuruí, Coimbra afirma que os parâmetros de indenização mudaram e isso garante uma indenização mais justa.
“Em Tucuruí foram indenizados aqueles que perderam suas propriedades. O que acontece é quem, às vezes, a propriedade era muito simples, então a indenização foi pelo valor patrimonial, que foi baixo, mas hoje diante dessa nova realidade em que a gente tem um conceito de atingido e não mais de expropriado, a indenização é feita de modo que haja uma recomposição da vida atual, tanto em termo de valor quanto em termo de condições morais de a pessoa residir e assim por diante
Ainda de acordo com ele, será construído um dique de 11 km de extensão margeando o Rio Tocantins, com objetivo de diminuir o tamanho da área que será alagada.
Fonte: Marabánotícias.com