Aos poucos, um novo bairro vem tomando forma. Um sonho de muitas décadas alimentado pela resistência, luta e esperança dos moradores de Piquiá, em Açailândia, sul do Maranhão. Ao completar um ano do inicio da construção do bairro Piquiá da Conquista (23/11), cerca de 70 pessoas, entre elas muitas crianças, reuniram-se no local da obra para uma comemoração coletiva, com uma visita guiada pelo terreno.
A moradora Flávia Silva, mãe de Miguel, 3, e Aylla, 6, participou do momento junto com mais pessoas da família. “A minha maior felicidade nessa visita foi ter levado os meus motivos de luta e vê-los tão felizes naquele lugar. Meu irmão e meu pai que também estiveram na visita. Faltou a minha inspiração, a mulher que sempre esteve ao meu lado, Dona Maria. Cada vez que vou na obra sinto uma energia que me fortalece, isso me faz continuar”, ela ressalta.
A execução das obras segue sob a responsabilidade da Associação Comunitária dos Moradores do Pequiá (responsável pela execução da obra), USINA – Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado. A cada finalização de etapa, num total de 24, técnicos da Caixa Econômica Federal vão ao local, fazem uma medição e emitem um parecer aprovando o repasse da seguinte parcela.
O desafio para um projeto tão sonhado é justamente garantir a pontualidade no repasse dos recursos federais, com o objetivo que a obra possa avançar sem interrupções. Ao todo, somando todos os dias em que a obra esperou a entrada de recursos entre medições, o empreendimento ficou paralisado por 115 dias em 2019. É muito tempo para quem esperou por mais de três décadas em um lugar incompatível para a vida humana.
Em 2007, estudos concluíram que era preciso um reassentamento das famílias de Piquiá devido aos danos ambientais e violações de direitos humanos provocados pelas operações das empresas siderúrgicas e pela Vale S.A., com a conivência de todas as instituições do Estado. Em 2008, 96% dos moradores votaram em plebiscito por uma mudança da comunidade e pela responsabilização das empresas. Nos anos seguintes, vários estudos demonstraram o risco e a violência à qual são submetidos cotidianamente os moradores de Piquiá. Destacamos o estudo do Instituto dos Tumores de Milão; as atividades dos jovens Vigilantes Populares em Saúde, formados pela Fiocruz; os relatórios sobre violações dos direitos realizados pela Federação Internacional dos Direitos Humanos (FIDH).
Uma longa luta está sendo travada com as empresas e autoridades que deveriam garantir o bem viver das comunidades para a concretização do bairro Piquiá de Conquista e reparação integral dos danos sofridos. De 2008 até a assinatura do contrato, foram dez anos de muita pressão internacional, nacional e regional por parte da comunidade. Entre as mobilizações e articulações importantes para essa conquista realizada em Açailândia, lembramos: os processos judiciais de 21 famílias iniciados em 2005, a marcha dos moradores-as de Piquiá até o Fórum de Justiça, a Romaria Estadual da Terra e das Águas realizada em Piquiá de Baixo, protestos com mascaras anti poluição em frente à Prefeitura da cidade e à casa da prefeita; interdições da BR 222; manifestações e bloqueios das entradas das empresas siderúrgicas; denúncias do caso em diversos contextos, desde o Seminário Internacional sobre os 30 anos de Carajás até o Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em Washington, participação dos moradores na Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio + 20), premiação do projeto urbanístico no Fórum Social Urbano na Colômbia, lançamento de filmes e documentários sobre a luta de Piquiá: Pulmões de Aço; A peleja do povo contra o dragão de ferro; Minério de ferro, viagem sem retorno; Desenhando um sonho: a história da luta de Piquiá de Baixo. O caso também foi levado ao papa Francisco em duas ocasiões: apresentando-lhe a campanha “Piquiá de Baixo: Reassentamento Já” e recentemente no Sínodo para a Amazônia.
Em 2017, finalmente, a Associação Comunitária de Moradores de Piquiá (ACMP) esteve na Caixa Econômica Federal de Açailândia (MA), para a assinatura do contrato para liberação do financiamento do projeto de reassentamento da comunidade de Piquiá de Baixo. Depois de muita luta, a ACMP conseguiu que o reassentamento fosse financiado pelo programa federal Minha Casa Minha Vida, prevendo a construção de 312 unidades habitacionais e da infraestrutura básica do novo bairro. O financiamento será somado ao recurso do selo de qualidade urbana da Fundação Vale, conquistado pelo projeto. Os equipamentos públicos (escola, creche e posto de saúde) não estão contemplados dentro deste financiamento e cabe ao poder público municipal e estadual assegurar que eles sejam construídos. A ACMP já informou o poder público e apontado essa necessidade.
Em novembro de 2018, os trabalhos começaram. São realizadas mensalmente assembleias com as famílias para prestação de contas e informes sobre o andamento da obra. Lamentavelmente, a falta de compromisso efetivo do Estado e das empresas com o reassentamento tem gerado atrasos no repasse dos recursos, o que tem impactado o bom andamento das obras.
O financiamento ainda não é suficiente para a construção inteira do bairro; a Associação está reivindicando o direito a um reassentamento digno e sem mais delongas. A história de Piquiá de Baixo é um exemplo inspirador para muitas comunidades no Brasil e no mundo e demonstra que é possível, pelo protagonismo popular, reverter histórias de violações, reafirmando a dignidade das pessoas.
Yndara Vasques