Moradora de Piquiá de Baixo participa de webinário com o tema ‘Violações de direitos socioambientais no Brasil: uma trajetória perigosa e trágica’
14 de outubro, 2020

Na manhã da última quinta-feira, 08, ocorreu o webinário “Violações de direitos socioambientais no Brasil: uma trajetória perigosa e trágica”. O encontro virtual contou com a participação de moradores de comunidades brasileiras que são impactadas por resíduos tóxicos. O webinário teve por objetivo reunir os diversos depoimentos de  problemáticas ambientais e violações de direitos humanos do Brasil para um momento de escuta com o relator da Organização Nações Unidas (ONU), Marcos Orellana. 

Na ocasião, a moradora de Piquiá de Baixo, Kelly Silva Barbosa explicou os desafios e enfrentamentos diários sofridos pela comunidade. “Eu costumo dizer que a nossa comunidade é ilhada por impactos: tem a linha do trem causadora do impacto sonoro; as siderúrgicas que emitem poluição no ar. A poluição traz impacto direto à saúde, a saúde na nossa comunidade é muito precária devido a isso. O nosso bairro é esquecido e deveria ser ao contrário, já que nós estamos ao lado de onde sai a riqueza da cidade de Açailândia (que é o minério); por que nosso bairro não é valorizado com a riqueza que sai daqui? Porque deveria ter um olhar melhor para a nossa comunidade em relação a asfalto e tudo mais”. 

Kelly explicou que em seus 30 anos de vida sempre foi em meio a poluição e o bairro segue esquecido pelas empresas e governantes. “Cabe uma parcela de culpa aos governantes por todo esse impacto sofrido na nossa comunidade. Porque a partir do momento que uma empresa se instala e retira algo que é da comunidade, as empresas e governantes têm que repor também. A empresa se instalou na comunidade por causa do rio. A empresa lava o minério no rio. O rio está sendo maltratado. E nós não vemos nenhuma reparação de danos”. 

120 pessoas acompanharam o evento e assistiram a apresentação da Kelly. Após relatar outras problemáticas que afetam a comunidade diariamente, ela enfatizou sua preocupação com o processo de reassentamento de Piquiá e finalizou seus 10 minutos de fala com uma pergunta ao relator da ONU. 

“Nós estamos com duas lutas: pelo nosso bairro pra ele não ser mais impactado. A minha preocupação é também: o que vai ser feito do bairro depois que a gente sair? Porque nós vamos sair, o reassentamento está acontecendo. Mas e o bairro? Desejo que depois que for retirada as pessoas de lá, possa ser uma área preservada para que não aconteça isso com outros bairros vizinhos. quando a gente for retirada de lá se instalar outras empresas, isso pode se tornar uma bola de neve: poluir os outros bairros. Como poderemos manter uma comunicação regular com o senhor  para o apoio ao processo de reassentamento das 312 famílias junto ao governo brasileiro visto que esse é um caso emblemático de reparação para a região?”

Ao longo de mais de 1h40 minutos de webinário, o relator ouviu com atenção as problemáticas de representantes de movimentos sociais de Minas Gerais, especialmente, das cidades de Mariana e Brumadinho (MG); Suape (PE); Piquiá (MA) e Dourados (MS). 

“Não é um tema apenas econômico ou ambiental, senão um eixo fundamental dos direitos Humanos: Justiça ambiental e racismo ambiental: terras indígenas, quilombolas, locais que dependem dos territórios e a terra, que os fazem vulneráveis às contaminações; é preciso efetividade dos tratados internacionais para sinalizar os efeitos dos elementos contaminantes. Vemos vazios legais e de política pública, das agendas específicas como as do plástico, pesticida, a exportação de agrotóxicos proibidos, o despejo aéreo de tóxico, resíduos eletrônicos”

O relator pontuou ainda sobre os “abusos corporativos de grandes empresas” que provocam uma série de violações de direitos humanos. “A regressão que se nota no Brasil é uma tendência profunda com a retirada de recursos, desregulamentação e perda de instituições de regulação, aprovação de agronegócios, operações industriais sem permissão. O estado tem a responsabilidade de proteger os direitos das atividades corporativas, as companhias estão se auto regulando o que leva comumente aos abusos de direitos humanos, o valor da natureza, desconsiderando a vida”.

Recomendações do relator Orellana 

Durante a recomendação do relator, Orellana destacou que o crescimento econômico não pode ser separado da justiça ambiental. Além disso, segundo ele, construir políticas baseadas em evidências, desacreditar nas ciências, a irracionalidade triunfa. 

“É preciso que haja pressão ao governo e companhias para garantir a reparação integral; construir temas estruturais e emergenciais dos direitos humanos; estamos fazendo uma planejamento regional para identificar e elevar os temas dos direitos humanos em relação às substâncias tóxicas”.

Orellana afirmou que “há uma regressão no Brasil, uma tendência profunda de retirada de direitos, desmantelamento e perdas de instituições de regulação de meio ambiente, além de uma incapacidade de promoção ao acesso à justiça”.

O relator da ONU criticou a negligência do governo brasileiro para os crimes ambientais e as violações de direitos humanos. “O Governo Brasileiro está sacrificando seu povo e seus recursos naturais em prol de desenvolvimento do mercado. É dever do Governo Federal proteger as comunidades contra as irresponsabilidades corporativas”.

Outro ponto forte das explicações do relator foi quando afirmou que “o Governo que pode receber as recomendações para incorporar os registros de violações de direitos humanos apresentados no relatório”. O Estado deve operar pelo interesse público, não apenas na defesa de interesses privados e deve primar pela verdade das informações e da legitimidade da ciência. E isso, de fato, não está sendo promovido pelo Governo Brasileiro”.

Qual a importância do webinário? 

O evento foi apoiado e promovido pela Cáritas Minas Gerais, Conectas Direitos Humanos, Conselho Indigenista Missionário (CIMI), Fórum Suape, Justiça Global e Rede Justiça nos Trilhos. Esse encontro se fez necessário porque o relatório sobre resíduos tóxicos foi construído a partir da visita do então Relator Especial da  ONU, Baskut Tuncak, em dezembro de 2019 passando pelos estados de Minas Gerais, Maranhão, Pernambuco além do Distrito Federal.

O mandato do então  relator Tuncak encerrou esse ano e o novo titular passou a ser Marcos Orellana, que em uma das suas primeiras atividades enquanto Relator Especial, apresentou o relatório do Brasil construído em setembro de 2020, durante a  45ª Sessão Ordinária do Conselho de Direitos Humanos (CDH) da ONU, em Genebra. 

Na ocasião, Orellana apresentou o cenário de profundo retrocesso, evidenciando o desmantelamento de instituições, violações de direitos socioambientais e descumprimento de leis e compromissos internacionais, agravados sob o pretexto da COVID-19.  

O webinário da última quinta, 08, teve como objetivo promover um debate com as mesmas populações que sofreram (e sofrem) violações de direitos humanos devido aos riscos de exposição a produtos tóxicos, muitas vezes decorrentes diretamente de operações empresariais, e que, em sua maioria, receberam a visita da Relatoria Especial da ONU sobre as implicações para os direitos humanos da gestão e disposição ambientalmente saudáveis de substâncias e resíduos perigosos em 2019. 

O relator pôde ouvir os representantes das comunidades e municípios atingidos diretamente pelos resíduos tóxicos e foi uma oportunidade de disseminar o relatório, compreender os seus desdobramentos e ensejar possíveis ações para prosseguimento das recomendações.  

No webinário estiveram presentes como painelistas pessoas de comunidades atingidas pelos desastres dos rompimentos de barragem de rejeitos de minério de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), em Minas Gerais, comunidades afetadas pelas operações de siderúrgicas e mineração em Piquiá de Baixo (desde anos 80), no Maranhão, comunidades afetadas direta e indiretamente pelo porto de Suape (desde anos 70) e derramamento de óleo, em Pernambuco, e povos indígenas afetados pelo uso de agrotóxico em Mato Grosso do Sul.

Na apresentação em Genebra e registrado no relatório oficial, foi enfatizado, por meio de recomendação, que o governo brasileiro seja investigado internacionalmente devido às suas políticas ambientais e de direitos humanos e Orellana apontou retrocessos “em relação aos princípios, leis e normas de direitos humanos, em violação ao direito internacional”. Dessa forma, o agravamento das violações aos Direitos Humanos no território brasileiro foi amplamente debatido no relatório da ONU. 

O documento recomenda também que o Conselho de Direitos Humanos da ONU realize um inquérito sobre a situação atual dos direitos humanos no Brasil, com ênfase especial no meio ambiente, saúde pública e proteção do trabalho e pessoas defensoras dos direitos humanos.  O papel do Relator Especial da ONU é monitorar e aconselhar sobre direitos humanos sob uma perspectiva temática por país. Integra o sistema de Procedimentos Especiais, um mecanismo das Nações Unidas para direitos humanos. 

Casos como os crimes ambientais em Brumadinho e Mariana (MG) e Piquiá de Baixo (MA) foram apresentados no Conselho de Direitos Humanos da ONU, como exemplos  de como as medidas dos governos facilitam as violações de direitos humanos e da natureza e os seus efeitos nos territórios. Porém, o governo do Brasil se recusou a aceitar qualquer tipo de recomendação da ONU, como também rejeitou a investigação internacional contra o país.

Frente a esse cenário, o presidente Jair Bolsonaro foi convocado a responder as problemáticas citadas no relatório da ONU. Em sua resposta ao Relator, o presidente não citou Piquiá de Baixo, negou que todas as problemáticas citadas no relatório estivessem acontecendo e não aceitou nenhuma recomendação que viesse do Relator. 

O webinário foi um momento importante para que a movimentação das próprias comunidades continuem e, organizadas junto a ONU, permaneçam cobrando seus direitos junto ao governo federal. 

por Daniela Souza