A publicação reúne 21 receitas tradicionais de remédios naturais preparados com plantas cultivadas nos quintais das mulheres assentadas.
Lançamento do livro Receitas do Quintal de Casa, no assentamento Francisco Romão.
Xarope de ervas, lambedor para crianças, chá para desinflamar a coluna e chá contra a ansiedade. Esses são apenas alguns dos remédios presentes no livro Receitas do Quintal de Casa, escrito por trabalhadoras rurais assentadas na região de Novo Oriente, em Açailândia, Maranhão.
A coordenação do projeto ficou por conta das mulheres: Anna Gasparini, Alzeneide Prates e Valdênia Paulino, que lideraram a iniciativa junto às mulheres assentadas. A produção do livro é de autoria da Associação de Mulheres Sementes da Terra e contou com o apoio da equipe de Fortalecimento Comunitário da Justiça nos Trilhos (JnT), fortalecendo a valorização dos saberes tradicionais e a autonomia das comunidades.
No dia 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, o Assentamento Francisco Romão recebeu cerca de 39 mulheres para o lançamento do livro Receitas do Quintal de Casa. A maioria delas é autora das 21 receitas publicadas, e o evento representou um momento de celebração e resistência, reafirmando a importância dos saberes tradicionais e populares. Além de valorizar essas práticas ancestrais, a iniciativa fortalece a luta coletiva pela proteção dos territórios e pelo Bem-Viver.
A ideia do livro nasceu das vivências, experiências e resistências das famílias que há gerações utilizam remédios naturais. As receitas são preparadas por avós, mães, rezadeiras e benzedeiras, que transmitem seus saberes populares ao cultivar plantas medicinais em seus quintais. Tudo isso em busca da prevenção, cura e restauração da saúde de mulheres, homens, idosos e crianças.
Larissa Santos (esquerda), Raimunda Araújo e Morgana Meirellys (direita).Mulheres reunidas no evento de lançamento do livro.
Aos 45 anos, Alzeneide Prates, agricultora e estudante de Letras, lembra com nitidez dos avós preparando receitas caseiras para tratar as enfermidades da família. Crescendo em um ambiente onde o conhecimento sobre plantas medicinais era essencial para o bem-estar, ela testemunhou como esses remédios naturais se tornaram uma forma de cuidado e resistência. Em um cenário onde as populações rurais ainda são marginalizadas pelas políticas públicas e carecem de estrutura de saúde adequada, essas práticas tradicionais continuam sendo um alento para o corpo e a alma. Mais do que isso, são aliados da cura, acessíveis a poucos passos do quintal.
Conhecida como “Gabi”, Alzeneide conta que passou a preparar chás regularmente e, sempre que recebe visitas, oferece um pouco. Ela também doa mudas para quem deseja plantar em casa. Mais do que um tratamento para doenças, os chás podem ser consumidos sempre que a pessoa quiser, bastando sentir vontade.
“Esses saberes ancestrais e tradicionais precisam ser cultivados, preservados e transmitidos para que não se percam. As plantas medicinais sempre contribuíram e continuam contribuindo para a saúde das pessoas. O que acontece muitas vezes é que a população se apega aos medicamentos industrializados e esquece que muitas fórmulas farmacêuticas vêm justamente das plantas medicinais”, reflete Alzeneide.
O livro como instrumento de preservação dos saberes tradicionais
A Justiça nos Trilhos (JnT), que apoiou a produção do material, destaca que o livro também é um instrumento de resistência e empoderamento das mulheres assentadas. Para Larissa Santos, Coordenadora Política na JnT, a obra reforça o direito das comunidades de preservação e compartilha seus conhecimentos:
“Para nós, é muito importante poder realizar um trabalho que fortalece a autonomia e o protagonismo das mulheres. Elas são as autoras do livro e também das mobilizações e resistências dentro de suas comunidades. Falam de contextos totalmente ignorados pelo setor público e dominados por interesses empresariais que ameaçam suas existências. Poder contribuir minimamente com essas lutas é uma missão da Justiça nos Trilhos. Mas o mais importante é que elas se fortaleçam e tenham dignidade para viver onde escolheram viver”, reflete Larissa.
Anna Gasparini, missionária leiga comboniana e integrante da equipe de Alternativas Econômicas da JnT na época da produção do livro, foi uma das organizadoras da obra. Ela conta que aprendeu muito com as receitas das mulheres. Para ela, as receitas são histórias vivas, mais do que apenas cópias de ingredientes:
“Uma vida em uma gota de remédio, e dentro daquela gota, tinha muito mais do que uma erva fervida na água. Tinha carinho, amor e cuidado”. O poder do remédio não vem somente da planta, mas do amor das pessoas que colocam dentro daquela receita.
“É uma forma de resistência presencial e moral das mulheres. Uma presença de continuidade com os ancestrais e as famílias delas, junto com a sabedoria das mães e avós dessas mulheres ao longo da vida. Esse livro surgiu muito do desejo de fazer e deixar algo prático desses conhecimentos em formato de livro, contando um pouco da história das Mulheres Sementes da Terra”, diz Anna Gasparini.
Você pode conferir a receita do suco de hibisco e do banho de folha de pião roxo, de Alzeneide Prates, além de muitas outras preparações, no livro disponível gratuitamente aqui.
As receitas não substituem orientações e tratamentos médicos. Se estiver fazendo uso de alguma medicação, consulte um profissional de saúde antes de consumir qualquer chá.
Receitas do Quintal de Casa é o que todas, todos e todes
buscam quando o corpo quer cura e afeto. São
receitas que vêm de nossas raízes e da nossa
ancestralidade — Conhecimento que Salva.
As raízes, as folhas, as sementes, as ramas e o fruto que
vêm da Mãe Natureza nos socorrem quando precisamos
nos acalmar de alguma tristeza, de uma perda, do
cansaço, do estresse, da insônia, da dor de barriga,
das lombrigas, das dores nas pernas, das cólicas, das
enxaquecas…
Nos socorrem quando o acesso às políticas
públicas de saúde está longe, muitas léguas, ou
quando a oferta no território é ainda precária.
Não tem sido fácil lutar e resistir para preservar
e defender as terras de onde vêm as nossas
receitas e curas, pois a soja, o eucalipto e outras
espécies do monocultivo têm nos espremido, nos
envenenado com a pulverização aérea de
agrotóxicos e ameaçam gravemente a segurança
e a diversidade alimentar.
Mas nós, Mulheres de Vanguarda, resistimos,
defendemos e protegemos nossa terra e os frutos
dela. Esse caderninho de Receitas do Quintal de Casa
é um dos jeitos de cuidar de você e de nós, de não ceder
Atingidas pela mineração e agronegócio se reúnem em Piquiá da Conquista para fortalecer a luta pelo direito à memória e denunciar os impactos desses empreendimentos em seus territórios.
“A única luta que se perde é a que se abandona”. Fotos: Thiago Santos
No dia 25 de janeiro de 2025, cerca de 30 mulheres se reuniram em Piquiá da Conquista, em Açailândia (MA), para fortalecer a luta pelo direito à memória da comunidade de Piquiá de Baixo. O encontro foi um marco na construção de estratégias de resistência contra os impactos da mineração e do agronegócio no Corredor Carajás, fortalecendo laços de solidariedade entre as mulheres atingidas.
Essa mobilização integrou a etapa preparatória para o Encontro Regional dos Atingidos e Atingidas pela Mineração e o Agronegócio (ERAM), reunindo mulheres de diferentes territórios do Brasil — Maranhão, Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e outras regiões — em um espaço de articulação, denúncia e memória viva. Durante as atividades, as participantes reafirmaram o compromisso coletivo de registrar e difundir suas histórias, garantindo que suas lutas não sejam apagadas.
A programação iniciou no Centro Comunitário de Piquiá de Baixo, de onde as mulheres partiram em caminhada, com cartazes e palavras de ordem em defesa dos modos de vida das comunidades tradicionais. O ato também prestou uma homenagem emocionante às vítimas do crime socioambiental de Brumadinho (MG), que completava seis anos na mesma data.
Mulheres unidas em Piquiá da Conquista homenageiam vítimas do crime socioambiental de Brumadinho.Mulheres reunidas em Piquiá da Conquista tecem resistências.“Nossa história somos nós quem contamos”.
A luta da comunidade de Piquiá de Baixo contra a poluição causada pela cadeia da mineração resultou no reassentamento de 312 famílias para o bairro Piquiá da Conquista, buscando afastá-las dos impactos diretos da poluição do ar e sonora. As mulheres presentes discutiram como essas violações afetam seus corpos e suas realidades, conectando experiências de diferentes territórios.
“Em Piquiá de Baixo, sofremos muitos impactos, como a poluição sonora e do pó de ferro. Muitas famílias tiveram seus filhos queimados pela munha, além dos acidentes na BR-222 por conta dos caminhões. Estávamos cercados pela Estrada de Ferro Carajás e, por outro lado, pelas empresas produtoras de minério de ferro”, relatou uma das participantes.
O direito à memória reivindicado pelas mulheres é parte do conceito de reparação integral, que reconhece a importância de contar suas próprias histórias para que as violações sofridas não se repitam.
Larissa Santos, coordenadora política da Justiça nos Trilhos, enfatizou a importância de documentar e compartilhar esses relatos: “A memória é um direito, e as comunidades violadas devem ter a liberdade de contar suas versões para que sejam respeitadas”.
Larissa Santos no centro comunitário de Piquiá da Conquista.Mulheres fazem visita ao bairro Piquiá de Baixo.
Margarida Negreiros, que viajou de Marabá (PA) para participar do encontro, destacou como a realidade de sua região se assemelha à de Piquiá de Baixo devido à mineração: “Eu tinha muita curiosidade de conhecer Piquiá, porque ouço falar há muito tempo sobre as questões que atravessam esse território, que foi tomado das pessoas para que a mineração se estabelecesse”.
O ato foi organizado pela Justiça nos Trilhos no contexto da preparação para o ERAM, que acontecerá ainda este ano. “Temos dialogado para trazer as mulheres e debater as questões vivenciadas nos territórios. A ideia do encontro foi mobilizar elementos para debatermos no ERAM”, concluiu Margarida Negreiros.
Dessa experiência transformadora nasceu o documentário “Memórias”, uma produção audiovisual fruto da formação “Veias Abertas da América Latina: Resistência, Comunicação e Cultura”, realizada de 22 a 26 de janeiro. A iniciativa buscou fortalecer redes de resistência cultural e política, criando espaços de troca, formação e comunicação popular para comunidades impactadas.
O curta-documentário sobre o encontro de mulheres no pré-ERAM, produzido em parceria com a Justiça nos Trilhos (JnT), o Instituto para Democracia, Mídia e Intercâmbio Cultural da Alemanha (IDEM) | Cooperação Alemã (BMZ), e com o apoio da Agência Zagaia, do Grupo LoveLabCom, da RádioTV Quilombo Rampa e da Mídia Guajajara,já está disponível no YouTube da Justiça nos Trilhos.
Iniciativa promove arte e descontração para mulheres assentadas e moradoras de Piquiá da Conquista, resgatando a alegria e a expressividade como ferramentas de empoderamento e luta
Oficina de Palhaçaria incentiva a essência brincante de mulheres defensoras dos direitos humanos em Açailândia (MA)
Entre os dias 13 e 15 de fevereiro, a oficina “Empoderamento Feminino com Práticas de Palhaçaria” percorreu assentamentos da região de Açailândia (MA) e o bairro Piquiá da Conquista, proporcionando momentos de descontração e expressão artística para mulheres defensoras dos direitos humanos e da natureza.
A atividade foi conduzida pelo grupo artístico Miramundo, sob a coordenação da professora de Artes da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Michelle Cabral. O objetivo do projeto era estimular o relaxamento e a desinibição das participantes por meio da palhaçaria, permitindo que redescobrissem a alegria e a espontaneidade em suas rotinas.
Duas oficinas foram realizadas: uma no assentamento Francisco Romão, voltada para mulheres da comunidade, e outra no bairro Piquiá da Conquista. Essa não foi a primeira passagem do projeto pela região, em 2017, já havia promovido atividades artísticas em parceria com a Justiça nos Trilhos. Entusiasmada com a experiência anterior, Michele procurou a organização para retomar a colaboração.
Professora de Artes, Michelle Cabral.
“A oficina de práticas de palhaçaria realizada pelo projeto Miramundo foi essencial para despertar características que as mulheres já têm, mas que acabam se esquecendo nas suas rotinas diárias. Elas tiveram a oportunidade de potencializar o seu ‘eu’ artístico, a alegria e as crianças brincantes de cada uma. Com isso, elas se reenergizam e ampliam suas criatividades para continuar os trabalhos em suas comunidades, em defesa da vida e da natureza.”
Para Ana Maria, moradora de Piquiá da Conquista, a experiência foi transformadora. “Nunca tinha vivido algo assim, mas a curiosidade me levou até lá. Foi um momento de soltar a voz, de descobrir a palhaça que já existia dentro de cada uma de nós. Quando colocamos o nariz vermelho, parecia que tudo mudava, a timidez foi embora e a gente se sentiu mais leve, mais à vontade. Foi uma vivência única, uma energia coletiva incrível”, contou.
Mulheres de Piquiá da Conquista na oficina de palhaçaria.
E ao final da experiência, uma personagem ficou marcada na memória das participantes: “A Palhaça Palita é sensacional!”, concluiu Ana Maria, com entusiasmo.
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