Unidade de saúde marca vitória histórica da comunidade de Piquiá da Conquista: entenda a luta por reparação integral
Moradoras de Piquiá da Conquista presentes na inauguração da Unidade Básica de Saúde. Foto: João Paulo Alves.
Famílias de Piquiá da Conquista celebram a inauguração do primeiro posto de saúde localizado na comunidade, um dos quatro equipamentos públicos construídos no bairro a fim de atender a população da região. O evento de inauguração aconteceu na última quinta-feira, 04 de setembro, em Açailândia (MA), e reuniu representantes do Governo do Maranhão, Prefeitura de Açailândia e setores de empresas da siderurgia como a Aço Verde Brasil (AVB).
Fruto de uma luta popular por moradia e reparação integral frente às violações de direitos humanos e da natureza provocadas pela logística da mineração, o reassentamento Piquiá da Conquista é resultado da mobilização de muitas mãos conjuntas. A Associação Comunitária dos Moradores e Moradoras de Piquiá (ACMP) e organizações sociais como a Justiça nos Trilhos (JnT) não receberam convite direto para participação da solenidade pelo governo municipal.
As obras públicas são fruto de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em maio de 2021 entre Governo do Maranhão, Prefeitura Municipal de Açailândia, Ministério Público do Maranhão (MPMA) e ACMP. O acordo previa a construção de uma unidade básica de saúde pelo Governo Estadual (UBS) no valor de R$ 1,2 milhão, escola e creche avaliadas em R$ 1,3 milhão, quadra esportiva em R$ 1,2 milhão e um mercado municipal no valor de R$ 300 mil reais. Já o município ficaria responsável pelo funcionamento e manutenção das obras.
A ideia do reassentamento coletivo partiu das famílias de Piquiá de Baixo, lá em 2007, no qual elas decidiram pelo deslocamento forçado para longe dos impactos industriais da siderurgia na região. Na falta de uma política pública de habitação que atendesse às necessidades de famílias impactadas por violações socioambientais no Brasil, a comunidade foi atrás de uma solução. Em outubro de 2024, as 312 famílias de Piquiá de Baixo assinaram os contratos referentes à entrega das casas em Piquiá da Conquista, e puderam iniciar o processo de mudança já a partir desse mês.
As famílias de Piquiá de Baixo, hoje Piquiá da Conquista, participaram desde as mobilizações iniciais pela alternativa de reassentamento, quanto do desenho do projeto arquitetônico do bairro e até autogestão da obra por alguns anos. São 19 anos de luta desde a primeira mobilização do antigo Presidente da Associação de Moradores e Moradoras de Piquiá de Baixo, seu Edvard Dantas, que insatisfeito com a situação de poluição e dor que as famílias viviam, começou as primeiras mobilizações em 2004.
A inauguração recente do primeiro equipamento público em Piquiá da Conquista demonstra o poder da mobilização popular por direitos sociais no Brasil. A luta de Piquiá de Baixo é referência nacional e internacional por reivindicação de direitos como moradia no Brasil. Para a advogada popular Morgana Meirellys, a inauguração da unidade básica de saúde revela a importância da luta pela reparação integral por parte das famílias que tiveram seus direitos violados e foram obrigadas a deixar o rio, a natureza e tudo aquilo que era familiar por tantos anos no bairro Piquiá de Baixo. Até agora, apenas a unidade básica de saúde foi entregue. A previsão de entrega dos quatro aparelhos públicos era até 30 de junho de 2022.
“Esses moradores tinham, em Piquiá de Baixo, um bairro já sedimentado, construído com unidade básica de saúde, escola e associações comunitárias, e foram forçados a se deslocarem. Portanto, dentro desse conceito de reparação no que diz respeito a condições dignas de moradia e ao direito à saúde, a gente entende que essa reparação ainda está caminhando. E aí nós também temos três anos a mais além do prazo de conclusão dessas obras que o governo do estado não cumpriu. Em virtude disso, o próprio Ministério Público Estadual entrou com um processo judicial para execução desse TAC por conta do atraso”, explica Morgana.
O próximo passo é isentar as famílias do pagamento da taxa de financiamento na Caixa Econômica Federal (CEF), compreendendo que esse processo também faz parte de uma reparação integral de fato justa e ampla. A reparação integral é um conceito construído pelas próprias comunidades atingidas por violações de direitos, que reivindicam não apenas indenizações financeiras, mas a restauração de sua dignidade, modos de vida e territórios. Ela parte do princípio de que apenas as vítimas têm pleno conhecimento da extensão dos danos sofridos e, portanto, devem participar diretamente de todas as etapas do processo de reparação.
O conceito abrange uma série de medidas articuladas: mitigação emergencial dos danos; restituição dos direitos violados em condições iguais ou melhores; compensações e indenizações; reabilitação física, psicológica e social; ações de satisfação, como reconhecimento público da responsabilidade e resgate da memória das vítimas; e garantias de não repetição, que incluem mudanças estruturais e responsabilização para evitar que as violações se repitam.
Mais do que uma compensação material, a reparação integral busca reconstruir a vida das pessoas atingidas em todas as dimensões, reconhecendo a gravidade das violações, assegurando o acesso à verdade, à justiça e a políticas públicas efetivas. Trata-se de uma obrigação do Estado e das empresas responsáveis, que devem assumir seu papel na reparação histórica e coletiva dessas comunidades. No caso da comunidade de Piquiá de Baixo, o rio Piquiá, os pés de acerola, o brejo conhecido como banho do 40 e muitas outras memórias de infância nunca poderão ser recuperadas.
O encontro “Territórios do Comum”, realizado entre os dias 5 e 8 de junho, reuniu mulheres lideranças de vários estados para debater justiça climática, racismo ambiental e a resistência de quilombolas, caiçaras e povos do campo diante das ameaças do capitalismo extrativista
No Sesc de Registro, próximo a São Paulo, mulheres de diferentes regiões do país, como Maranhão, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Acre, se encontraram para trocar experiências, relatos de luta e traçar estratégias para proteger seus territórios em comum. Entre as lideranças estavam Adriana Oliveira, mulher negra, assentada e presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Açailândia (MA), e Larissa Santos, pesquisadora e coordenadora política da Justiça nos Trilhos (JnT).
O evento, organizado pela Fundação Rosa Luxemburgo, reuniu movimentos sociais, comunidades tradicionais, organizações feministas e grupos da agroecologia. Entre os temas mais debatidos estiveram a economia solidária, a importância da agroecologia e o papel fundamental das mulheres nas frentes de resistência contra a expansão de grandes projetos que ameaçam modos de vida tradicionais.
A presença de Larissa e Adriana também marcou o lançamento do livro Mulheres em defesa do território-corpo-terra-águas, uma obra coletiva construída por mulheres que resistem ao avanço do capitalismo extrativista. O livro é fruto de anos de formação e diálogo, financiado pela Fundação Rosa Luxemburgo — que disponibiliza a obra gratuitamente em seu site — e publicado pela editora Funilaria.
Durante o lançamento, Larissa falou sobre o processo coletivo de escrita do artigo Mulheres e Mineração: resistências feministas à mineração e ao garimpo ilegal no Corredor de Ferro Carajás, que traz um panorama das violações de direitos humanos e ambientais no Maranhão e no Pará. O artigo também tem a coautoria da pesquisadora Ailce Margarida Alves.
Larissa compartilhou ainda a dura realidade das comunidades maranhenses impactadas pelos grandes projetos de mineração e agronegócio, e como grupos, associações e coletivos de mulheres vêm resistindo a esses ataques.
Adriana Oliveira, agricultora e assentada, aprofundou o debate ao relatar sua experiência pessoal e coletiva. Moradora de Açailândia (MA), região cercada pelo entreposto de minério da Vale S.A. e pela monocultura da soja, ela sente no corpo, na história do seu povo e nos modos de vida cultivados desde a infância, os efeitos devastadores desses projetos econômicos.
“Para mim, foi uma experiência muito viva. Vivemos em um território cheio de ameaças e, muitas vezes, pensamos que estamos sozinhas. Já pensei em desistir. Mas, nesses encontros, vejo que não estou só, que há muitas pessoas defendendo a terra, o território e o próprio corpo com suas vidas”, conta Adriana.
Outro momento importante para ela foi o diálogo com professoras e acadêmicas sobre as dificuldades enfrentadas pelos povos do campo. “Vi que existem universidades realmente interessadas em investigar e dar voz às lutas e angústias desses povos. Me senti acolhida”, afirma.
A professora e pesquisadora Fabrina Furtado, do Departamento de Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (DDAS/UFRRJ) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ), destacou a importância do lançamento do livro Mulheres em defesa do território-corpo-terra, realizado no Vale do Ribeira.
Para ela, o momento foi profundamente significativo, por reunir mulheres agricultoras da região e permitir a partilha com lideranças de diferentes territórios. “Tive a honra de compartilhar a mesa com mulheres inspiradoras e enraizadas na luta pelos territórios: Nilce de Pontes Pereira dos Santos, quilombola do próprio Vale do Ribeira; Natália Lobo, da SOF; e também Larissa Pereira Santos e Adriana Oliveira, de Açailândia (MA).”
Fabrina ressaltou o protagonismo das maranhenses no enfrentamento às grandes ameaças que recaem sobre os territórios tradicionais. “Larissa, militante da Justiça nos Trilhos e coautora de um dos artigos do livro, é alguém que tenho o privilégio de acompanhar há alguns anos. Adriana, trabalhadora rural, quilombola e assentada da reforma agrária no Assentamento Novo Oriente, também é uma guerreira incansável. Ambas dedicam suas vidas à luta contra a mineração, o agronegócio e as empresas que ameaçam os modos de vida dos povos tradicionais. Estar ao lado dessas mulheres foi não apenas emocionante, mas politicamente inspirador.”
O lançamento fez parte de um encontro maior, que buscou debater a vida e a luta dos povos do Vale do Ribeira e outros territórios da Mata Atlântica no Brasil, conectando essas histórias às discussões da Cúpula dos Povos rumo à COP30 e às lutas por justiça ambiental ao redor do mundo. O Vale do Ribeira, região que abrange os estados de São Paulo e Paraná, é reconhecido pela sua rica diversidade ecológica e pelas fortes resistências em defesa da natureza.
Construção coletiva reuniu lideranças, juventudes e pesquisadores para enfrentar violações de direitos no Corredor Carajás
Um encontro, muitos rostos, a mesma vontade: seguir em defesa da vida e da Amazônia Maranhense. Foto: Arquivo JnT
Entre os dias 24 e 25 de maio, a Associação Justiça nos Trilhos (JnT) realizou, em Açailândia (MA), o Seminário de Preparação para o Planejamento Estratégico do triênio 2026, 2027 e 2028. Durante dois dias, lideranças comunitárias, juventudes, movimentos sociais, pesquisadores e organizações da sociedade civil estiveram reunidos para escutar, analisar e propor caminhos diante dos desafios que atravessam os territórios impactados pela cadeia logística da mineração, ao longo do Corredor Carajás, rota de escoamento do minério de ferro extraído pela mineradora Vale, que conecta o sudeste do Pará ao litoral maranhense.
Hoje, essa mesma infraestrutura tem servido como vetor da expansão do agronegócio e de outras formas de exploração intensiva da terra. Com base nas urgências e denúncias apresentadas pelas comunidades, o encontro buscou preparar o terreno para o novo plano de ação da Justiça nos Trilhos, organização que há mais de 15 anos atua em defesa dos direitos humanos, da natureza e da soberania dos povos da Amazônia Oriental.
O cenário atual é alarmante. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o ano de 2024 já concentra o segundo maior número de conflitos no campo em toda a série histórica iniciada em 1985, atrás apenas de 2023. Foram registradas 2.185 ocorrências, com destaque para a Amazônia Legal, região marcada por incêndios, desmatamento e pela intensificação das ofensivas do agronegócio e da mineração sobre florestas, territórios tradicionais e modos de vida comunitários.
Um dos dados mais graves debatidos no encontro foi o crescimento expressivo dos casos de envenenamento por agrotóxicos no Maranhão. Segundo levantamento realizado por organizações como a RAMA (Rede de Agroecologia do Maranhão), a Tijupá e a própria Justiça nos Trilhos, dos 276 casos rastreados no país, 228 ocorreram no estado, muitos deles provocados por pulverizações aéreas que atingem comunidades, escolas e áreas de produção agroecológica.
“Vivemos um consenso político-ideológico no país que insiste em chamar de desenvolvimento a destruição dos nossos territórios por meio das commodities como soja, minério e petróleo”, alertou o professor e pesquisador Bruno Malheiro, da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA), que abriu o primeiro dia de atividades ao lado da professora Cíndia Brustolin, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), com uma análise de conjuntura sobre os impactos da cadeia extrativista na região.
Rotas de sacrifício, territórios de resistência
No turno da tarde, jovens de territórios como Sítio do Meio (Santa Rita), Terra Indígena Rio Pindaré (próxima a Santa Inês), quilombo Santa Rosa dos Pretos e Bacabal, esta última com representação do GT de Juventude da Rama, compartilharam as principais lutas de suas comunidades e os impactos socioambientais que enfrentam diariamente. Em seus relatos, destacaram-se as consequências da mineração, da expansão do agronegócio com o monocultivo de soja, do uso intensivo de agrotóxicos e da implementação de grandes obras de infraestrutura, como linhões de energia e duplicações de rodovias.
As falas reforçaram um alerta já exposto por pesquisadores: os megaprojetos de infraestrutura, muitas vezes legitimados sob o discurso de desenvolvimento, têm servido como gatilhos para violações sistemáticas dos direitos humanos e da natureza. “Onde tem assassinato, desmatamento e conflito na Amazônia, tem estrada, tem ferrovia”, afirmou o professor Bruno Malheiro. “Com os olhos do mundo voltados para a Amazônia, vão se criando novas rotas de sacrifício, por onde os projetos de mineração e agronegócio pretendem sangrar os territórios.”
Bruno chama a atenção para o que denomina engenharia do colapso, a lógica que substitui os antigos eixos de integração nacional por verdadeiros corredores de destruição. “Se a gente pensa no asfaltamento de rodovias, estamos falando de sacrifícios de populações. Está na hora de nos posicionarmos, inclusive enquanto academia, para afirmar que isso não é um projeto de desenvolvimento, mas de massacre e destruição.”
As juventudes presentes no encontro reafirmaram com contundência que essas violações têm rosto, nome e idade. Seus depoimentos escancararam os impactos diretos da atuação de grandes empresas e do Estado, que avança sem considerar a autonomia dos povos e suas formas próprias de existência.
A advogada popular Fernanda Souto, da JnT, reforçou a importância do encontro como espaço de articulação entre os territórios. “Foi um momento importante para nos fortalecermos e para ampliar nossa visão. Ver os jovens falando com tanta firmeza e verdade mostra que o futuro da luta está vivo e pulsante. O planejamento da JnT precisa nascer dessa escuta”, destacou.
Construindo o amanhã com os pés no chão
No segundo dia do encontro, a escuta ativa das comunidades e de parceiros foi o centro da programação. Em rodas de conversa, foram compartilhadas prioridades e propostas para os próximos três anos de atuação da JnT, a partir das vivências concretas nos territórios.
Entre as demandas levantadas durante o encontro, ganharam força o fortalecimento da comunicação popular, o apoio às práticas agroecológicas, a formação política das juventudes e a incidência internacional diante das violações cometidas por grandes corporações transnacionais.
Ana, liderança da comunidade de Piquiá de Baixo, território marcado há décadas pela contaminação causada pelas siderúrgicas do polo Carajás e recentemente reconhecido por sua luta em defesa dos direitos humanos, falou sobre a realidade e a força de seu povo: “O que vivemos não é só dor e violação, é também luta e conquista coletiva. É nesse chão que precisamos fincar nossas estratégias.”
Para Ana, participar dos encontros da JnT é mais do que um momento de debate, é um exercício de pertencimento. “Os encontros da JnT pra mim são sempre muito bons. Trazem aprendizado, novas experiências e, principalmente, a convivência com outras comunidades. Isso me deixa ainda mais à vontade. É muito significativo ver que a mulher participa do planejamento da Justiça nos Trilhos.”
Ela também destacou o quanto é valioso perceber que a organização constrói junto, ouvindo, acolhendo e incorporando as vozes dos territórios. “Foi muito importante e admirável ver que a JnT está nas comunidades, ajudando no que é possível e ainda trazendo a gente pra participar do seu planejamento. Isso gera confiança e nos dá estímulo.”
Mikaell Carvalho, coordenador da JnT, enfatizou o compromisso da organização em caminhar ao lado das comunidades, com ações de enfrentamento, formação e incidência. “Saímos desse seminário com a certeza de que estamos no caminho certo. A participação das comunidades no processo de construção do nosso planejamento estratégico reafirma o compromisso da JnT com a defesa dos territórios e modos de vida comunitários ameaçados por empreendimentos ligados à mineração e ao agronegócio.”
O encerramento do encontro foi mais do que um momento de planejamento coletivo. Foi um exercício profundo de memória, resistência e construção de caminhos, um passo firme para manter viva a luta por justiça socioambiental, dignidade e direitos nos territórios atravessados pelo Corredor Carajás.
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