Encontro internacional em Abuja conecta vozes do Maranhão e da África Ocidental na luta contra os impactos da mineração e pela defesa de uma transição justa.
Renato Lanfranchi, coordenador da JnT, durante fala via transmissão online.
A experiência das comunidades brasileiras na defesa de seus territórios cruza o oceano e se conecta às vozes da África Ocidental. A Justiça nos Trilhos (JnT), organização que atua na Amazônia maranhense no enfrentamento aos impactos da mineração, participou da 5ª edição do Indaba das Comunidades Afetadas pela Mineração na África Ocidental, em Abuja, Nigéria, levando práticas de resistência e justiça ambiental construídas junto aos povos da região.
Organizado pela Global Rights, o encontro reuniu comunidades anfitriãs, lideranças tradicionais e organizações da sociedade civil, além de promover diálogo com agências reguladoras, formuladores de políticas e associações de mineradores da África Ocidental. O tema central foi: “Contextualizando a Mineração Verde dentro do Princípio do Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI)”. Mais do que um debate técnico, o Indaba se afirma como espaço de protagonismo popular e construção de alternativas.
Convidado para o debate por meio de transmissão online, um dos coordenadores da JnT, Renato Lanfranchi, apresentou um panorama das violações de direitos humanos e da natureza provocadas por empresas transnacionais como a mineradora Vale S.A. no Brasil e no Maranhão.
Ele destacou a atuação da JnT em conjunto com as comunidades ao longo do Corredor Carajás na articulação de enfrentamentos e citou o caso da comunidade de Piquiá de Baixo, que protagoniza uma luta histórica por reparação integral e justiça socioambiental. Renato também abordou a realidade de assentamentos e acampamentos rurais e urbanos impactados pelo avanço da monocultura de soja na região.
Sobre a discussão em torno dos “minerais críticos” e da transição energética, a JnT manifestou uma posição cautelosa e crítica diante do discurso das indústrias e empresas transnacionais no Brasil.
“Na Justiça nos Trilhos, somos muito cautelosos com a narrativa de sustentabilidade e com tudo que é chamado verde. Precisamos nos perguntar: será que a ‘transição energética’ não é, na verdade, mais do mesmo? Mais extração, mais agressões contra a Mãe Terra para retirar os minerais considerados críticos para a transição, ao mesmo tempo em que se mantém o uso de fontes de energia fóssil?”, questionou Lanfranchi.
O que é o Indaba e por que importa
“Indaba” significa “reunião importante” em zulu e xhosa. Trata-se de um território político no qual as comunidades afetadas pela mineração falam em seu próprio nome, compartilham experiências e definem estratégias conjuntas de defesa de seus direitos.
Em um cenário marcado pela corrida global por minerais críticos como lítio e cobalto, usados em baterias, o encontro questiona as promessas da chamada mineração verde e denuncia seus impactos sociais, ambientais e culturais.
Na prática, a mineração na região segue resultando em deslocamentos forçados, degradação ambiental, aumento das desigualdades e violência contra comunidades tradicionais. Ao colocar as populações diretamente afetadas no centro das discussões, o Indaba afirma a urgência de uma transição justa, que respeite o CLPI e a autonomia dos povos sobre seus territórios.
A contribuição brasileira
A participação da JnT reforça a dimensão internacionalista da luta. Ao compartilhar experiências da Amazônia, a organização conecta a realidade brasileira à africana, mostrando que os problemas causados pela mineração têm raízes comuns e exigem respostas coletivas.
Partilha de saberes via plataforma digital.
Essa troca amplia a incidência política e dá visibilidade a práticas construídas há décadas no Brasil, desde o monitoramento popular até a defesa da natureza como parte inseparável dos direitos humanos. O diálogo com as comunidades da África Ocidental reafirma que não há fronteiras quando se trata de proteger a vida diante do avanço predatório da mineração.
Um encontro para unir lutas
Durante três dias, o Indaba promoveu oficinas, fóruns comunitários, exposições e uma feira de conhecimento em um ambiente de aprendizado coletivo e fortalecimento de alianças. O objetivo central é construir um movimento informado e unido de comunidades anfitriãs da mineração na África Ocidental, capaz de reivindicar um setor extrativo centrado nos povos de toda a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO).
Mais do que denunciar violações, o espaço aponta caminhos possíveis: o fortalecimento da autonomia comunitária, a implementação efetiva do CLPI e a construção de uma governança que coloque os direitos humanos e a natureza no centro.
A presença da JnT demonstra que, do Brasil à África Ocidental, comunidades resistem e se articulam internacionalmente para transformar a lógica da exploração mineral. O Indaba é, assim, um marco da luta coletiva por justiça ambiental, provando que a força dos povos cresce quando se conecta além das fronteiras.
No encontro do CEBI, a luta por direitos humanos e cuidado com a Casa Comum se encontra com a fé e a resistência popular
Reencontros que carregam história: na roda do CEBI, revisitamos caminhos da Justiça nos Trilhos (JnT), lembramos lutas de Piquiá e ouvimos o som que acompanha nossa jornada, “Que Trem Esse”, de Paulo, trilha da nossa resistência. Entre memórias e perspectivas, a conversa se fez viva com Divina, do MST, e João Palmeira, da CRF de Coquelândia. | Foto: João Paulo
No último sábado (27), Imperatriz (MA) recebeu um encontro que reuniu fé, justiça social e cuidado ambiental. Promovido pelo Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), o evento trouxe organizações e comunidades para discutir os impactos das mudanças climáticas e a urgência de proteger a Casa Comum, inspirado pela encíclica Laudato Si.
A iniciativa também contou com a participação da Justiça nos Trilhos (JnT), que compartilhou relatos de quem vive às margens da Estrada de Ferro Carajás (EFC) e sofre, diariamente, com os efeitos da mineração e do agronegócio. Segundo Mikaell Carvalho, coordenador da JnT, não se trata apenas de solo, água ou ar degradados: “Estamos falando de modos de vida inteiros sendo desestruturados, de comunidades ameaçadas, de vidas que clamam por justiça”.
Um espaço de troca, lembrança e força para seguir os caminhos da justiça socioambiental. | Foto: João Paulo
Um dos exemplos mais marcantes apresentados foi o de Piquiá de Baixo, em Açailândia (MA). A comunidade, sufocada pela poluição do polo siderúrgico, precisou ser realocada. A resistência histórica do povo resultou no reassentamento em Piquiá da Conquista, hoje referência em direitos humanos e proteção ambiental.
O papel da Igreja também foi lembrado, especialmente dos Missionários Combonianos, que acompanharam a comunidade ao longo da luta, mostrando que a fé pode ser instrumento de transformação social, e não apenas ritual nos templos.
O encontro reforçou uma mensagem clara: é possível articular fé, justiça social e cuidado ambiental mesmo diante de um modelo de desenvolvimento que privilegia lucro em detrimento da vida. Histórias como a de Piquiá provam que resistência e solidariedade caminham juntas, nos trilhos e fora deles.
Unidade de saúde marca vitória histórica da comunidade de Piquiá da Conquista: entenda a luta por reparação integral
Moradoras de Piquiá da Conquista presentes na inauguração da Unidade Básica de Saúde. Foto: João Paulo Alves.
Famílias de Piquiá da Conquista celebram a inauguração do primeiro posto de saúde localizado na comunidade, um dos quatro equipamentos públicos construídos no bairro a fim de atender a população da região. O evento de inauguração aconteceu na última quinta-feira, 04 de setembro, em Açailândia (MA), e reuniu representantes do Governo do Maranhão, Prefeitura de Açailândia e setores de empresas da siderurgia como a Aço Verde Brasil (AVB).
Fruto de uma luta popular por moradia e reparação integral frente às violações de direitos humanos e da natureza provocadas pela logística da mineração, o reassentamento Piquiá da Conquista é resultado da mobilização de muitas mãos conjuntas. A Associação Comunitária dos Moradores e Moradoras de Piquiá (ACMP) e organizações sociais como a Justiça nos Trilhos (JnT) não receberam convite direto para participação da solenidade pelo governo municipal.
As obras públicas são fruto de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado em maio de 2021 entre Governo do Maranhão, Prefeitura Municipal de Açailândia, Ministério Público do Maranhão (MPMA) e ACMP. O acordo previa a construção de uma unidade básica de saúde pelo Governo Estadual (UBS) no valor de R$ 1,2 milhão, escola e creche avaliadas em R$ 1,3 milhão, quadra esportiva em R$ 1,2 milhão e um mercado municipal no valor de R$ 300 mil reais. Já o município ficaria responsável pelo funcionamento e manutenção das obras.
A ideia do reassentamento coletivo partiu das famílias de Piquiá de Baixo, lá em 2007, no qual elas decidiram pelo deslocamento forçado para longe dos impactos industriais da siderurgia na região. Na falta de uma política pública de habitação que atendesse às necessidades de famílias impactadas por violações socioambientais no Brasil, a comunidade foi atrás de uma solução. Em outubro de 2024, as 312 famílias de Piquiá de Baixo assinaram os contratos referentes à entrega das casas em Piquiá da Conquista, e puderam iniciar o processo de mudança já a partir desse mês.
As famílias de Piquiá de Baixo, hoje Piquiá da Conquista, participaram desde as mobilizações iniciais pela alternativa de reassentamento, quanto do desenho do projeto arquitetônico do bairro e até autogestão da obra por alguns anos. São 19 anos de luta desde a primeira mobilização do antigo Presidente da Associação de Moradores e Moradoras de Piquiá de Baixo, seu Edvard Dantas, que insatisfeito com a situação de poluição e dor que as famílias viviam, começou as primeiras mobilizações em 2004.
A inauguração recente do primeiro equipamento público em Piquiá da Conquista demonstra o poder da mobilização popular por direitos sociais no Brasil. A luta de Piquiá de Baixo é referência nacional e internacional por reivindicação de direitos como moradia no Brasil. Para a advogada popular Morgana Meirellys, a inauguração da unidade básica de saúde revela a importância da luta pela reparação integral por parte das famílias que tiveram seus direitos violados e foram obrigadas a deixar o rio, a natureza e tudo aquilo que era familiar por tantos anos no bairro Piquiá de Baixo. Até agora, apenas a unidade básica de saúde foi entregue. A previsão de entrega dos quatro aparelhos públicos era até 30 de junho de 2022.
“Esses moradores tinham, em Piquiá de Baixo, um bairro já sedimentado, construído com unidade básica de saúde, escola e associações comunitárias, e foram forçados a se deslocarem. Portanto, dentro desse conceito de reparação no que diz respeito a condições dignas de moradia e ao direito à saúde, a gente entende que essa reparação ainda está caminhando. E aí nós também temos três anos a mais além do prazo de conclusão dessas obras que o governo do estado não cumpriu. Em virtude disso, o próprio Ministério Público Estadual entrou com um processo judicial para execução desse TAC por conta do atraso”, explica Morgana.
O próximo passo é isentar as famílias do pagamento da taxa de financiamento na Caixa Econômica Federal (CEF), compreendendo que esse processo também faz parte de uma reparação integral de fato justa e ampla. A reparação integral é um conceito construído pelas próprias comunidades atingidas por violações de direitos, que reivindicam não apenas indenizações financeiras, mas a restauração de sua dignidade, modos de vida e territórios. Ela parte do princípio de que apenas as vítimas têm pleno conhecimento da extensão dos danos sofridos e, portanto, devem participar diretamente de todas as etapas do processo de reparação.
O conceito abrange uma série de medidas articuladas: mitigação emergencial dos danos; restituição dos direitos violados em condições iguais ou melhores; compensações e indenizações; reabilitação física, psicológica e social; ações de satisfação, como reconhecimento público da responsabilidade e resgate da memória das vítimas; e garantias de não repetição, que incluem mudanças estruturais e responsabilização para evitar que as violações se repitam.
Mais do que uma compensação material, a reparação integral busca reconstruir a vida das pessoas atingidas em todas as dimensões, reconhecendo a gravidade das violações, assegurando o acesso à verdade, à justiça e a políticas públicas efetivas. Trata-se de uma obrigação do Estado e das empresas responsáveis, que devem assumir seu papel na reparação histórica e coletiva dessas comunidades. No caso da comunidade de Piquiá de Baixo, o rio Piquiá, os pés de acerola, o brejo conhecido como banho do 40 e muitas outras memórias de infância nunca poderão ser recuperadas.
Comentários