Com provas impossíveis de ignorar e vozes historicamente silenciadas, a Amazônia fez seu próprio julgamento e expôs a distância entre promessas globais e realidades locais

Enquanto a COP 30 projeta o Brasil no centro das negociações climáticas globais, Belém testemunha um segundo palco de debate, menos protocolar, mais urgente e profundamente enraizado no território. Durante a Cúpula dos Povos, o Tribunal Popular em Defesa da Amazônia realizou uma sessão que expôs a face invisível da crise climática: as violações sofridas por comunidades tradicionais onde grandes projetos de mineração avançam com velocidade e quase nenhuma fiscalização.
Realizado na quinta-feira (13), o Tribunal responsabilizou politicamente o Governo do Pará e as mineradoras Imerys/Artemyn, Hydro, Vale e Belo Sun pelos danos socioambientais recorrentes em regiões quilombolas, ribeirinhas, indígenas e camponesas. As denúncias ecoaram como contraponto direto à conferência oficial, marcada por discursos diplomáticos e metas de longo prazo.
Um palco para o que a Justiça não enxerga
O Tribunal Popular é uma ferramenta construída pelos movimentos sociais para dar visibilidade ao que não chega aos tribunais tradicionais. Aqui, as provas não são apenas laudos técnicos, mas corpos adoecidos, rios contaminados, comunidades deslocadas e décadas de negligência estatal.
Larissa Santos, coordenadora política da Justiça nos Trilhos (JnT), pesquisadora maranhense nascida na Amazônia, acompanha há mais de 13 anos pesquisas e experiências comunitárias ao longo da Estrada de Ferro Carajás (EFC), a maior ferrovia de transporte de minério do Brasil, operada pela Vale S.A. Em uma das falas mais marcantes da sessão, ela reforçou que os impactos da mineração têm território e têm gênero.


“Assim como Anacleta Pires (em memória) e Flávia Silva, centenas de outras mulheres que vivem entre o Pará e o Maranhão têm seus corpos e territórios atravessados por uma ferrovia de 892 quilômetros”, afirmou. “Com a finalidade de exportar minério, especialmente ferro, a Vale opera a maior ferrovia do país, deixando inúmeros crimes contra a natureza e contra as pessoas.”
Segundo Larissa, onde a mineração se estabelece há uma mudança radical na geografia e no cotidiano das comunidades: rios assoreados, florestas devastadas, poeira tóxica recobrindo casas, aumento da violência e destruição de roçados. “A extensão da Estrada de Ferro Carajás, também conhecida como Corredor de Carajás, tornou-se um corredor seco, um corredor da morte”, disse, citando as mulheres que vivem na região.
No Maranhão, destacou, essas dinâmicas se materializam em graves violações de direitos humanos, como o direito à alimentação adequada, à água e ao saneamento básico, à saúde, à moradia, ao trabalho, aos meios de subsistência, à participação na vida cultural e nos assuntos públicos, à mobilidade, ao acesso à informação e ao direito a um meio ambiente saudável. “Existem estudos científicos que comprovam todas essas violações. Precisamos de medidas efetivas que responsabilizem a Vale pela devastação da Amazônia e por todos os direitos violados.”
O cotidiano transformado em prova
O Tribunal exibiu vídeos e fotografias que mostravam a extensão dos danos. Entre as imagens estavam igarapés cobertos de sedimentos, pastos e hortas inutilizadas, poeira industrial acumulada sobre telhados e móveis e crianças com problemas respiratórios associados à poluição.
Para Antonia Flávia Nascimento, moradora de Piquiá da Conquista, o que está em jogo não é ausência de evidência, mas ausência de decisão política. “Esses crimes acontecem há décadas. O que falta nunca foi prova. Falta vontade”, afirmou.
Pela primeira vez participando de um Tribunal Popular, Antonia destacou a força simbólica e emocional do espaço:
“Eu nunca tinha vivido algo assim. Aqui, a gente sente que nossas dores importam. Ver tantas pessoas ouvindo, anotando, registrando… é como se, pela primeira vez, alguém dissesse para nós que o que a gente passa é real e merece justiça. Saio daqui mais fortalecida, porque percebo que não estamos sozinhos; nossas vozes estão ecoando para além de Piquiá.”
A fala de Antonia sintetizou a sensação de muitos presentes: as violações não são casos isolados, mas parte de um sistema que privilegia grandes empreendimentos e fragiliza comunidades tradicionais.
O peso de uma sentença simbólica
Sem efeito jurídico formal, o Tribunal Popular funciona como ferramenta política, pedagógica e histórica. Sua sentença atribui responsabilidade ao Governo do Pará e às empresas denunciadas, além de produzir documentos que podem embasar futuras ações judiciais, inclusive em instâncias internacionais.

O julgamento reforçou um recado poderoso, especialmente durante a COP 30: não há debate climático legítimo enquanto os povos que vivem no coração da Amazônia permanecem excluídos das decisões sobre seus territórios.
A simultaneidade entre COP e Tribunal evidenciou um abismo. De um lado, negociadores discutem metas de carbono e transições energéticas. De outro, comunidades amazônicas mostram que a devastação ocorre agora, diante da omissão ou conivência de governos e instituições.
A Cúpula dos Povos fez o que a conferência oficial não tem conseguido realizar com a mesma contundência: nomear, denunciar e responsabilizar agentes que ameaçam a maior floresta tropical do planeta.
Fotos por Elenilton Pires e João Victor