Jangada Água Viva: Autogestão como fonte de resistência comunitária
12 de fevereiro, 2020

“Temos que cuidar das nascentes de Jangada. Temos que cuidar do que ainda resta. A água sempre arruma um jeito para correr livre dessas sujeiras que a mineração produz, e é isso que me preocupa, porque pode ser que fiquemos todos sem água. A água é ‘sabida’ e vai dar um jeito de viver, mesmo que seja longe de nós”. É assim que o aposentado de 74 anos, Silvio Lima, morador que nasceu e vive até hoje em Jangada, zona rural de Brumadinho (MG), iniciou seu discurso no evento “Valorizando a Memória para ação presente: a Verdade pelas Águas e pela Vida – A história de resistência à mineração em Brumadinho 2010-2019”, realizado em parceria com a Campanha Janeiro Marrom, que também homenageou às 272 vítimas fatais do maior crime socioambiental, cometido pela Vale no Brasil. 

A preocupação de seu Silvio é a mesma das 200 famílias que moram na comunidade de Jangada, localizada a cerca de 15 km da barragem de rejeitos do Córrego do Feijão, em Brumadinho. Após um ano do crime que devastou grande parte da fauna e flora da região banhada pela bacia do Rio Paraopeba, 48 cidades, uma média de 1,300 milhão de habitantes, seguem com o uso da água do rio suspensa. O problema hídrico em Minas Gerais é assunto bastante abordado pelos comitês e associações que zelam pelo bem viver das comunidades afetadas pela cadeia da mineração no estado.

Antes da poluição com rejeitos de minério, o Rio Paraopeba era responsável por 30% do total de abastecimento da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), sendo os outros 70% abastecidos pela bacia do Rio das Velhas. Em janeiro de 2019, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas alertou sobre os riscos: há em torno de 70 barragens de rejeitos ao longo do curso do rio, sendo que 40 estão com risco de rompimento, o que ameaça a água potável para beber, cozinhar e as demais atividades básicas do cotidiano de 5 milhões e meio de pessoas, na terceira maior região metropolitana do país.  

Nos últimos quatro anos, a Vale devastou o rio Doce e rio Paraopeba em Minas Gerais, espalhando cenas de destruição por todo Brasil e pelo mundo. Há sérios riscos de poluição de mais um rio no estado mineiro, um dos maiores afluentes do Rio São Francisco, o Rio das Velhas.

De acordo com dados da classificação da Agência Nacional de Mineração (ANM), o Brasil tem em média 200 barragens com alto potencial de dano. Minas Gerais é o estado que mais tem barragens com potencial de dano considerado alto. Entre as quase 200 catalogadas, 132 estão no estado. Para o resultado, a análise leva em conta perdas de vidas humanas e impactos sociais, econômicos e ambientais em caso de rompimento. No relatório, a barragem I do Córrego do Feijão em Brumadinho era considerada de risco baixo, o que demonstra que não há como mensurar de forma exata quais barragens estão realmente seguras e as devastações que um rompimento pode causar. 

A comunidade de Jangada e o Movimento Águas e Serras de Casa Branca, que atuam no monitoramento das operações do Complexo Paraopeba da Vale desde 2010, reafirmam o processo de enfrentamento se fortalecendo após o criminoso rompimento da barragem em Brumadinho. “Nossa água é inegociável, nossas vidas não estão à venda. Há anos também defendemos o direito de dizer Não à mineração”, afirma Carolina de Moura, coordenadora da Associação Comunitária de Jangada, agricultora, jornalista e moradora da região. 

Lugar onde a memória da água é viva 

A rede de abastecimento de água da Jangada foi construída e é administrada de forma comunitária. Historicamente, há mais de 100 anos, antes de qualquer mineradora chegar à região, a população capta e distribui a água para seu consumo diário nas nascentes do Córrego da Jangada. São pelo menos seis nascentes que sofrem sérias ameaças com avanço da mineração. A comunidade hoje possui um manancial de porte, com vazão de 62 litros por segundo (90 metros cúbico por hora).

Os moradores se organizam por meio da Associação Comunitária de Jangada, que foi fundada em 2007. A história de defesa das águas e serras na região tem sido protagonizada por um coletivo de pessoas e grupos, e não apenas pela Associação da Jangada. Em alguns momentos o enfrentamento vem sendo realizado de forma mais ampliada pelo Movimento Águas e Serras de Casa Branca, articulado com outros grupos e organizações do Brasil e do exterior. 

“Temos como pauta central a defesa da água como direito humano e essencial à vida. Em meio a um trauma intenso e muita dor, fomos obrigados a ampliar nossa pauta, e agora trabalhamos também por Verdade, Justiça, Reparação Integral e Garantias de Não Repetição. Queremos que ninguém, em lugar nenhum do mundo, passe pelo o que estamos passando,” destacou Carolina em entrevista exclusiva para a Campanha Água Para os Povos. Além da incidência política junto às instituições de justiça e órgãos licenciadores, algo relevante na história da organização dos moradores é o trabalho de cultura e educação popular: Tardes Festivas pelas Águas e Serras, cinema na praça, teatro na escola, seminários e debates públicos. 

Segundo Carolina de Moura, que coordenada as frentes de trabalho da Associação, desde 2013, após a comunidade de Jangada ter feito um insistente trabalho de incidência junto à Prefeitura Municipal de Brumadinho e ter adquirido o aporte de materiais para a reforma da rede de distribuição de água, os moradores, de forma organizada, fazem o controle de qualidade da água. Seu Silvio é um dos responsáveis pela manutenção da área de captação. “Isso foi uma grande conquista, pois conseguimos colocar canos mais grossos, o que melhorou significativamente a chegada de água na casa das pessoas”, exalta. 

Positivamente, a autogestão da água na comunidade de Jangada pode ser considerada fonte de inspiração para outras comunidades, que também enfrentam impactos da mineração no Brasil. Toda organização da comunidade em torno do cuidado com as nascentes, que podem ser destruídas com a cadeia da mineração no estado, tem fortalecido a consciência de ecologia integral e da importância da organização popular. Para eles, a autogestão comunitária da água significa autonomia sobre um item que é fundamental para a sobrevivência. “Não somos reféns do poder público nem de nenhuma empresa para a distribuição de água do bairro”, afirmam os moradores em seus encontros periódicos. 

“Tenho a impressão de que as pessoas não sabem que a gestão da distribuição da água pode ser feita dessa forma. Isso está previsto na Lei de diretrizes do saneamento básico (Lei Federal 11.445/2007). Creio que nossa experiência mostra de alguma forma a importância de as pessoas cuidarem do seu território e tomarem iniciativas coletivas para solucionar por elas mesmas alguns dos seus problemas,” completa Carolina. 

“Lutar pela defesa da água, das pessoas e da Casa Comum é algo necessário, digno e gratificante.”

“Creio que nossa história inspira porque nós não desistimos. Tínhamos problemas na rede de distribuição de água e batalhamos até conseguir construir uma nova rede.  Mesmo sabendo que a Vale é gigante e atua de maneira inescrupulosa para atingir seus interesses, nós não nos intimidamos e lutamos incansavelmente para impedir as renovações de licenças ambientais e projetos de expansão do Complexo Paraopeba. As derrotas que sofremos são resultado da irresponsabilidade e ineficácia de quem tem o dever de cuidar do interesse coletivo”, reafirma Carolina. 

Para os moradores de Jangada e Casa Branca, a organização comunitária e popular tem sido uma importante ferramenta de cura., “Depois do trauma que vivemos, das cenas de guerra e terror que enfrentamos, da doída saudade eterna de todas as vidas que perdemos e da paz e do sossego que desapareceram, nós seguimos, dia a dia, nos reinventando para transformar o luto em luta. A gente se reúne, debate, desabafa, se apoia, fortalece os afetos e segue em frente”, completa.  

E com o apoio técnico de parceiros, especialmente o Movimento pelas Serras e Águas de Minas (MovSAM) e o Movimento pela Preservação da Serra do Gandarela, os moradores se fortaleceram e passaram a compreender no processo que não é possível conciliar a expansão de atividades mineradoras com a garantia da segurança hídrica. O minério de ferro e a água estão na mesma camada geológica: o quadrilátero ferrífero é, também, quadrilátero aquífero. Em meio à explosão de uma grave crise hídrica e climática, cujas tendências para o futuro não são animadoras, as nascentes subterrâneas são preciosidades de valor inestimável para a sociedade. “Já está claro tanto do ponto de vista científico (teórica e analítica) como empírico (prática): ou os mananciais são preservados ou a mineração expande suas atividades. As duas coisas são incompatíveis, não é possível o consenso, é um ou outro, é uma disputa territorial. Meu território, meu corpo. A humanidade precisa estar ciente de que está fazendo uma escolha. Defenda sua vida. Defenda a água”, conclui e clama a coordenação.