“Sinto que somos parte de um só corpo que ainda sangra”, entrevista com Valdênia Paulino sobre a vivência em Brumadinho-MG
9 de fevereiro, 2023

Em janeiro de 2023 o crime socioambiental da Vale em Brumadinho, Minas Gerais (MG), completou 4 anos. Exatamente às 12h28 de uma sexta-feira, do dia 25 de janeiro de 2019, a barragem da Mina do Córrego Feijão, da mineradora Vale, rompeu na Região Metropolitana de Belo Horizonte, despejando 12 milhões de metros cúbicos de resíduos. 

Foi o maior crime de trabalho do Brasil, pelo número de vítimas: 272 mortes, sendo que ainda há 3 pessoas desaparecidas. Além das vítimas humanas, a tragédia-crime contaminou o ecossistema da região, em especial os rios Paraopeba e São Francisco, do qual o primeiro é um dos afluentes. 

A Vale também está envolvida com o rompimento da barragem do Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), que ocorreu em 2015.  Além de MG, a empresa também segue impactando vidas humanas e a natureza, prejudicando o bem viver de comunidades no Maranhão, como é o caso de Piquiá de Baixo, em Açailândia-MA, comunidade impactada pela Estrada de Ferro Carajás (EFC) – de responsabilidade da Vale – e pelo pólo siderúrgico. 

Além do impacto da mineração e da poluição gerada pelas empresas que cercam Piquiá de Baixo, a região de Açailândia também é impactada pelo agronegócio que intensifica os conflitos na região e que se utiliza da EFC para escoar a produção de soja e commodities. 

A cadeia de mineração causa impactos irreversíveis à vida humana e ao meio ambiente e que causam ainda mais indignação pela impunidade. Em todas as situações citadas, as empresas tentam eximir-se de suas responsabilidades. 

Desde 2020 a Justiça nos Trilhos (JnT) participa de atividades e mobilizações em memória das vítimas da Vale em Brumadinho, esse ano, a JnT foi representada por três pessoas, nas quais estava Valdênia Paulino Lanfranchi, que é defensora de Direitos Humanos, Advogada, doutora em Serviço Social e Educadora Popular na JnT. 

Em brumadinho, Valdênia Paulino participou do seminário “4 Anos da Tragédia-Crime e os Impactos em Brumadinho e Municípios Mineradores”, na Faculdade ASA. Participou da “Carreata por Justiça”, que partiu do Cemitério Parque das Rosas, com uma parada no Cemitério Municipal (Brumadinho), participou também da celebração de uma missa no estacionamento central de Brumadinho que marcou a “IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho”, organizada pela equipe da Região Episcopal Nossa Senhora do Rosário. De lá, Valdênia e os presentes foram em caminhada até o letreiro da cidade, onde se somaram ao ato mensal em honra às 272 vítimas. 

Como educadora popular, Valdênia Paulino atua diretamente com as comunidades impactadas pela Vale no Maranhão, dentre elas, Piquiá de Baixo. Nesse sentido, ela foi convidada a nos contar sobre suas impressões diante da visita feita a Brumadinho este ano. 

Na entrevista, a advogada comenta sobre as conexões e diferenças entre as comunidades impactadas pela mineração em Minas e no Maranhão. 

Confira a entrevista na íntegra:

Repórter: Como você avalia os eventos que participamos? Esperava uma mobilização maior ou menor? Qual o impacto das homenagens para você que atua diretamente com pessoas impactadas pela Vale no Maranhão?

Valdênia Paulino: O evento integra o conjunto de ações que visam a reparação integral perseguida pelas famílias das vítimas e pela sociedade, também vítima da mineração. Foi uma grande mobilização envolvendo familiares das vítimas, representantes de organizações e movimentos sociais locais, nacionais e internacionais, comunicadores, bem como religiosos indígenas, de matrizes africanas e cristãs. Contudo, esperava a presença de mais moradores da cidade. No decorrer dos dois dias de atividades e com as saudações de comerciantes e moradores durante a Romaria, pude compreender que essa ausência está relacionada ao minério-dependência tão presente no município de Brumadinho. 

Quanto ao impacto sentido por mim, enquanto representante da associação Justiça nos Trilhos que trabalha com comunidades impactadas pela mineração e agronegócio no estado do Maranhão, o sentimento compreendeu dor, indignação, solidariedade, ânsia por justiça, sobretudo, uma grande conexão como se pertencêssemos a uma só família que sofreu e sofre com os impactos da mineração.

O lamento que não cala em meus ouvidos foi ouvir das famílias que além das três pessoas que não foram encontradas, nem mesmo nenhum fragmento, ainda faltam muitos outros corpos, pois muitas famílias encontraram apenas um antebraço, outras um dedo e elas clamam os corpos. Sinto que somos parte de um só corpo que ainda sangra, mas que vive pautado na utopia da JUSTIÇA.

Repórter: O que você leva de aprendizado para o Maranhão e para Piquiá de Baixo?

Valdênia Paulino: A vivência na celebração do 4º ano da tragédia de Brumadinho me trouxe como aprendizado a importância da simbologia para expressar as ações de resistência e a busca por justiça; a importância de envolver vários atores sociais (universidades, autoridades entre outros) na discussão coletiva sobre o caso central da luta por justiça em relação aos impactos da mineração; a relevância de criar agenda pública, como é o caso de algum ato todos os dias 25 de cada mês e a atividade de ano que é a Romaria. Penso que aqui no Maranhão, essas podem ser dicas importantes para fortalecer a nossa luta.

Repórter: Como você acha que a Justiça nos Trilhos pode conectar essas realidades de vidas impactadas pela mineração em Minas e no Maranhão?

Valdênia Paulino: Precisamos criar uma rede de famílias impactadas no Brasil, na América Latina e no mundo. Posso dizer que já começamos. Fizemos o convite para que familiares da associação venham nos visitar no Maranhão para conhecer como o impacto se dá aqui; conhecer as famílias das vítimas fatais atropeladas pelos trens da Vale e de outros acidentes ligados às empresas da cadeia da mineração. Penso que podemos ser protagonistas de uma iniciativa que, num futuro breve, estará conectada com outras coalizões de organizações sociais que estão na linha de frente nesta luta e em defesa dos direitos humanos e da natureza frente à mineração. Uma rede de famílias impactadas é fundamental nesse enfrentamento.

Repórter: Como a Vale pode ser responsabilizada por seus crimes no Maranhão? A JnT pode fazer o que exatamente para potencializar denúncias contra os crimes cometidos pela Vale? Quais crimes a Vale comete no Maranhão?

Valdênia Paulino: Estamos falando de responsabilização de uma empresa por crimes cometidos, ou seja, de crimes já previstos em lei. Assim, a responsabilização deve ocorrer em qualquer estado onde ela cometer os crimes. No caso do estado do Maranhão, há várias representações contra a empresa Vale, envolvendo vários municípios, seja no âmbito judicial como no administrativo. Essas representações versam sobre omissão no que tange a falta de passagens seguras nas comunidades atravessadas pela estrada de ferro Carajás; na ausência de proteção das ferrovias com muros com proteção anti ruídos; por indenizações em razão de mortes por atropelamentos de seus trens entre outras demandas. Também temos os TACs – termos de ajustamento de condutas e acordos administrativos no caso de Piquiá de Baixo, no município de Açailândia, no processo da construção do bairro para o reassentamento das 312 famílias. 

O que a Justiça nos Trilhos precisa potencializar é a visibilidade dessas ações e fazer isso de forma articulada com os parceiros que estão juntos nessas frentes. 

Repórter: Escreva aqui o que você acha que pode ajudar na produção da matéria. Escreva o que você acha importante ser mencionado. 

Valdênia Paulino: Gostaria que essa entrevista fosse publicada na íntegra.

Repórter: Para finalizar, fale para mim quem é a Valdênia Paulino para que quem não a conheça possa saber um pouco mais sobre você.

Valdênia Paulino: Vou resumir. Valdênia Paulino, é mulher negra, com ascendência indígena, filha da classe trabalhadora que aprendeu desde cedo que só é possível sobreviver com dignidade através da luta coletiva por um mundo capaz de superar o capitalismo, que só sobrevive com a exploração e a morte da classe trabalhadora – necropolítica.

Como a busca pelo conhecimento científico sempre foi uma necessidade e compreendendo-o como instrumento vital para a luta, fiz pedagogia, Direito, e fui para as pós-graduações na área do Direito e do Serviço Social. Agora, sigo buscando conhecimento na área do meio ambiente ligada ao direito. Aprendi desde as comunidades eclesiais de base, no movimento por moradia, na defesa das comunidades quilombolas e indígenas, na defesa da juventude negra e periférica e reafirmando na experiência com a Justiça nos Trilhos que a transdisciplinaridade é fundamental para a afirmação dos direitos. 

Nas palavras de Paulo Freire, não há saber ou área de conhecimento mais importante que outros, cada área, cada pessoa têm saberes importantes e o diálogo entre eles é o que produz o novo revolucionário. Hoje estou na equipe de fortalecimento comunitário da Justiça nos Trilhos aprendendo muito com as comunidades impactadas pela mineração e o agronegócio e compartilhando o que aprendi no decorrer de 40 anos de militância, com humildade, ousadia e esperança.

Galeria de fotos tirada durante a vivência:

Seminário “4 Anos da Tragédia-Crime e os Impactos em Brumadinho e Municípios Mineradores”, na Faculdade ASA.

Carreata por Justiça

Missa da IV Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho

Ato mensal em honra às 272 vítimas da Vale. 

Fotos: José Carlos Almeida