Ribeirinhos, quilombolas, indígenas, camponeses, estudiosos da Amazônia dialogaram sobre os impactos sofridos pela exploração do minério.
À primeira vista, o auditório pareceu uma multidão de solidões amontoadas, olhos fixos e ouvidos atentos às falas vindas do palco. Diante da realidade sendo discorrida, parecia um salve-se quem puder. No entanto, aos poucos, vozes aqui e acolá começaram a sobressair. Não eram falas individuais, e sim de lideranças que representam comunidades, organizações e grupos de pesquisas.
O sentido comunitário foi ganhando visibilidade, ele é um “bichinho duro de matar”. “Uma esperança resiste, persiste, insiste.” Com essa paráfrase de Eduardo Gaelano, escritor uruguaio, pode-se dar uma imagem ao Seminário Internacional Carajás 30 Anos: Resistências e Mobilizações Frente a Projetos de Desenvolvimento na Amazônia Oriental. O evento discutiu os problemas causados pela mineração de ferro na Serra dos Carajás e em toda a região chamada Corredor Carajás, localizada entre o sudeste do Pará e o oeste do Maranhão e cortada pela Estrada de Ferro Carajás (EFC).
Participaram do seminário 77 palestrantes vindos de 11 países das Américas, África e Europa, mais de mil participantes e 40 instituições organizadoras, entre universidades, institutos federais, movimentos sociais e organismos não governamentais. Foram 21 mesas-redondas, ocorrendo até 8 delas simultaneamente, em São Luís (MA), de 5 a 9 de maio. O evento foi denominado Território Dom Tomás Balduíno, em homenagem ao bispo, falecido em 2 de maio.
A discussão no seminário incidiu sobre as consequências da implantação de projetos de alto impacto na Amazônia, com o foco principal na mineração e na siderurgia. Outras realidades discutidas foram o agronegócio, o trabalho escravo, o meio ambiente, as resistências populares e a ação governamental. Esta é, muitas vezes, aliada aos grandes projetos, sem levar em consideração as consequências sobre grupos sociais, especialmente no Pará e no Amapá. Além das questões acadêmicas levantadas acerca desses problemas, foram ouvidos representantes de grupos sociais e de povos tradicionais de diversas partes do mundo, América do Sul, Europa, Canadá, Estados Unidos, África, que contaram suas experiências de violações de direitos, causadas principalmente pelas empresas de mineração.
A força da comunidade − “A gente percebe que os mesmos problemas que temos em Piquiá de Baixo acontecem na Itália, em Moçambique, na Colômbia, enfim, onde a Vale S/A explora minério”, destaca Joselma Alves de Oliveira, da Associação Comunitária dos Moradores do Piquiá de Baixo. O bairro, localizado em Açailândia (AM), é um caso emblemático, são 380 famílias que sofrem há décadas pela violenta poluição causada pelo polo siderúrgico das empresas de ferro-gusa: Viena Siderúrgica S/A, Gusa Nordeste S/A, Ferro Gusa do Maranhão, Siderúrgica do Maranhão S/A, Companhia Siderúrgica Vale do Pindaré, todas essas, clientes da mineradora Vale S/A. Antonio Soffientini, Missionário Comboniano, que atua junto à comunidade Piquiá de Baixo, conta que, por ser um bairro com localização baixa, as empresas lá localizadas margeiam a comunidade e a poluição vai direto para as residências. Ele lembra que, além da poluição do ar, do solo e da água, há a poluição sonora das siderúrgicas e do trem que passa de hora em hora pela Estrada de Ferro Carajás, transportando minério com seus 330 vagões.
“Somos violentados em nossos direitos. As guseiras jogam pó de ferro em nossas casas. Será que é normal no mundo se enxergar o ar que se respira?”, questiona Willian Pereira de Melo, que precisou se mudar do bairro onde viveu 35 anos, devido à perda de 40% da visão e a um câncer de pele contraído pela esposa. Pela contínua inalação de metais pesados, são comuns na população as doenças respiratórias como asma, bronquite, tosse crônica e alergias dermatológicas.
“O progresso chegou, mas o desenvolvimento não ficou aqui na cidade. Não é que sejamos contra o desenvolvimento, só não queremos a violação de nossa dignidade”, lembra Joselma, que ainda reclama do fato de tanto as empresas como o governo só visarem o lucro e não terem preocupação com a vida das pessoas. “Então, sair de Piquiá tornou-se uma necessidade e não um sonho para nós”, desabafa a moradora, que viveu seus 37 anos na comunidade.
Antonio Rio, habitante do bairro há 43 anos, conta que somente nos últimos dez anos a comunidade começou a se organizar. Com a ajuda de várias entidades, está lutando contra as empresas poluidoras por meio de manifestações e protestos, denúncias, processos judiciais, reivindicações para o monitoramento ambiental por parte do Estado e luta para a instalação de filtros e diminuição dos impactos.
No entanto, segundo o morador, o silêncio das empresas e do poder público fez com que a comunidade levantasse a cabeça e começasse a sonhar coletivamente. “Em 2008, por meio da associação de moradores, realizamos uma consulta e, quase por unanimidade, optamos pelo reassentamento coletivo em um novo local, livre da contaminação”, conta Antonio Rio. “O reassentamento foi, dentre outras possibilidades, a escolha da comunidade. A partir de então responsabilizamos pelo assentamento o município de Açailândia; o estado do Maranhão, pela parte dos poderes públicos; a Vale S/A, como as próprias siderúrgicas de Açailândia”, detalha Danilo Chammas, advogado da Rede Justiça nos Trilhos, uma articulação de organizações não governamentais e movimentos sociais que atua em defesa dos direitos socioambientais das comunidades que vivem às margens da EFC.
O projeto de exploração – Na Serra dos Carajás, no estado do Pará, desenvolve-se o Projeto Grande Carajás, de extração mineral em operação. Esse território era povoado pelos povos indígenas Karajá e Kayapó. Hoje, a exploração impacta diretamente, dentre os estados que compreendem a Amazônia Oriental, o Maranhão, o Amapá e o Pará.
A prospecção (sondagem) de minério de ferro na Serra dos Carajás teve início nos anos 1960 e ganhou impulso na década seguinte, quando a então estatal Companhia Vale do Rio Doce, hoje Vale S/A, assumiu o controle total da exploração de minérios na região. Em 1979, criou-se o Programa Grande Carajás (PGC), com a finalidade de produzir minérios em escala industrial para o mercado internacional.
A consolidação do PGC foi sendo realizada por obras de infraestrutura de grande impacto, como por exemplo a Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no sudeste do Pará, e o Porto de Ponta da Madeira, em São Luís, com a movimentação de cargas do Norte/Nordeste, e a Estrada de Ferro Carajás, que se estende por 900 mil quilômetros quadrados entre Parauapebas (PA) e o porto em São Luís, numa área que corresponde a um décimo do território brasileiro, atravessa os rios Xingu, Tocantins e Araguaia e percorre terras do sudeste do Pará, norte de Tocantins e oeste do Maranhão.
Segundo padre Dário Bossi, da Rede Justiça nos Trilhos, “dos 27 municípios atravessados pela EFC, 21 possuem Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) menor que a média dos seus estados”. O padre lembra que o programa, criado durante o governo João Figueiredo (1979 a 1985), surgiu com a promessa de proporcionar à região diversas oportunidades. “Contudo, 30 anos depois da implantação, muito disso ficou no papel. No chão de nossas regiões, ficaram os enormes buracos das minas da Serra Norte e, no coração da Floresta Nacional de Carajás, uma ferrovia com o fluxo que chega a escoar mais de 100 milhões de toneladas de minério de ferro por ano”, detalha o religioso.
O compromisso – Após reflexões, articulações, mobilizações e debates realizados ao longo do processo, incluindo os seminários preparatórios realizados o ano passado, em Imperatriz (MA) de 18 a 20 de outubro; e, neste ano, em Santa Inês (MA) de 20 a 22 de março, Marabá (PA) de 21 a 23 de março e Belém (PA) de 9 a 11 de abril, os participantes do Seminário Internacional Carajás 30 Anos redigiram a Carta de São Luís, afirmando:
“O extinto Programa Grande Carajás, cujas continuidades, hoje, são comandadas pela mineradora Vale S/A e seus parceiros, impôs um modelo de desenvolvimento que trouxe enormes prejuízos sociais, econômicos, políticos, culturais, artísticos, ambientais à Amazônia Oriental. Mineração, exploração ilegal de madeira, indústrias poluidoras, pesca predatória, monocultivos, pecuária extensiva, especulação imobiliária no campo e na cidade e obras de infraestrutura provocam profundas alterações nas paisagens e nos modos de vida.
Vivemos sob uma economia de enclaves, controlada por grandes corporações de alcance internacional e, assim como em várias partes do mundo, somos submetidos a: descomunal concentração de terras, a maior do País; poluição, destruição dos ecossistemas; concentração de renda; violência e assassinatos no campo e na cidade; trágicos conflitos fundiários; precarização do trabalho; trabalho escravo e infantil; desmonte da legislação trabalhista, ambiental e territorial; processos compulsórios de migração; aumento da miséria; genocídios de povos e comunidades tradicionais; desigualdade de gênero e marginalização da juventude e dos idosos.
A voracidade da extração de minério de ferro da região Carajás determina o projeto de abertura de uma nova e enorme mina na Serra Sul da Floresta Nacional Carajás, a duplicação da Estrada de Ferro, considerada ilegal pela Justiça Federal, e a construção de novas ferrovias, assim como a expansão do complexo portuário da região. O resultado é a intensificação das agressões aos povos, às comunidades e à natureza.
O agronegócio é inimigo da sociedade, com suas práticas destrutivas da natureza e dos modos de vida, da agricultura familiar camponesa e dos povos das florestas, das águas e das cidades. Trata-se de um modelo de produção que impõe uma alimentação envenenada com seus agrotóxicos. Esse ‘desenvolvimento’ constitui um crime de lesa-humanidade.
Nesse ambiente, denunciamos o Estado como agente promotor e sustentador de tal modelo econômico que oprime e explora. Salvo honrosas exceções, o Executivo, o Judiciário e o Legislativo, em todos os seus níveis, atendem aos interesses dos empreendimentos opressores. A relação é de cumplicidade e submissão, havendo um cordão umbilical entre o grande capital internacional, a estrutura oligárquica e os poderes locais.
Uma das principais ações dessa dinâmica é a violenta e histórica criminalização dos movimentos, organizações e lideranças sociais. O capital e o Estado não querem a manifestação pública! A pseudodemocracia serve, sobretudo e quase que exclusivamente, ao poder econômico e à estrutura oligárquica.
Esse processo de espionagem, criminalização e violência é uma manifestação da ditadura do capital que se expressa, dentre outras formas, através da censura e da manipulação da grande imprensa. Porém, existem resistências a esse desenvolvimento, em várias escalas e níveis, que envolvem a persistência de muitos que dizem não a tal modelo, são as comunidades tradicionais e os povos indígenas e quilombolas; os movimentos de mulheres, gênero e geração; organizações e movimentos sociais; organizações religiosas; intelectuais, trabalhadores e sindicatos do campo e da cidade; mídia alternativa. São muitos coletivos e sujeitos que acreditam e lutam a partir de outras referências, de outros paradigmas.
Reafirmamos o Seminário Internacional Carajás 30 Anos como um processo regional, nacional e internacional de articulação, reflexão e mobilização das resistências e diferentes formas de produção de saberes e cultura para a construção de um mundo justo e solidário.
Diante do exposto, chamamos a Amazônia, o Brasil e a sociedade internacional a refletir e resistir contra o desenvolvimento imposto pelo capital e a lutar por:
• soberania dos povos; • democracia popular; • reforma agrária; • demarcação de territórios indígenas, quilombolas e de populações tradicionais; • direito à moradia; • soberania alimentar; • conservação do ambiente;
• respeito às culturas e tradições;
Enfim, lutar pela vida. Afinal, diante da realidade desse modelo predatório e excludente, é necessário ‘perder a inocência’.
‘Enquanto houver fome, haverá luta’, Manuel da Conceição.
Por Osnilda Lima, fsp
São Luís, Amazônia, Brasil, 9 de maio de 2014”.
Fonte: Família Cristã, 942 junho 2014