No mês de maio uma enchente sem precedentes invadiu no Maranhão os vales dos rios Pindaré e Mearim, uma das regiões mais pobres do Brasil. Por semanas inteiras os moradores daquelas regiões ficaram desabrigados; as estradas cortaram-se inúmeras vezes no Maranhão todo, interrompendo o transporte de pessoas, mercadorias e alimentos; pontes caíram e algumas cidades ficaram isoladas.
Nos mesmos dias, as águas cobriram também a via férrea de Carajás e provocaram desmoronamentos, interrompendo o tráfego em dois pontos. A diferença é que a ferrovia de Carajás transporta o ferro mais puro do Brasil, desde a mina mais rica do mundo até o porto mais fundo do continente latinoamericano. A cada dia, ao longo dos trilhos, passa minério pelo valor médio de 21 milhões de dólares!
A lei do lucro, também nesse caso, fala mais alto de qualquer outra prioridade: a Companhia Vale do Rio Doce (Vale), gestora da estrada de ferro e da mina de Carajás, utilizou criatividade, tecnologia e abundância de mão-de-obra (500 homens foram mobilizados na operação) para levantar diques com sacos de terra dos dois lados dos trilhos e retirar de dentro dessa barragem improvisada a água acumulada através de bombas de sucção.
O jornalista Lúcio Flávio Pinto comenta o fato: “Enquanto nas desoladas vilas e cidades das proximidades as câmaras de televisão registravam precariedade, improvisação e pobreza, ou autoridades desajeitadas nas linhas de frente, na ferrovia agia o século XXI metropolitano. Um contrastante chocante para quem tivesse olhos para ver”.
A Vale do Rio Doce vítima e corresponsável da crise
A Vale tem um poder econômico comparável àquilo de inteiros Países: é a segunda maior mineradora do mundo por receita bruta, que supera o PIB de nações como o Quênia (37 milhões de habitantes). No mês de Março de 2009 declarou suas perspectivas de crescimento no Moçambique pela realização de uma mina de carvão e de uma central de energia térmica (fortemente poluidora): o investimento previsto é de mais de 4 bilhões de dólares, correspondentes a mais do 30% do PIB do Moçambique em 2008!
Uma empresa desse tamanho pode controlar a política de um País, influenciar suas leis e seus licenciamentos ambientais, determinar prioridades econômicas e decidir o que merece prioridade e o que pode esperar. No caso do Maranhão, prioridade ao escoamento do ferro, hemorragia mineral de nosso País que continua de veias abertas oferecendo sangue e vida para alimentar o lucro de outros (em 2007 somente 16% do produto da Vale ficou no Brasil, possibilitando investimentos e desenvolvimento interno).
Pode-se objetar que não cabe a uma empresa privada socorrer as vítimas de desastres naturais; duvidamos porém que as repetidas enchentes desses meses sejam somente fruto da loucura ambiental. O próprio bispo dom Xavier no Maranhão alerta: “As enchentes, como as periódicas estiagens, fazem parte de um cenário de agressões cada vez mais violentas e aceleradas ao clima”.
A responsabilidade social de qualquer empresa deve levar em conta sem desconto os efeitos colaterais desse modelo de produção, baseado sobre a monocultura, a devastação da mata nativa para alimentar os fornos de carvão para as siderúrgicas, a poluição (somente em São Luís 70% dos óxidos de nitrogênio, 53% do dióxido de enxofre e 30% do material particulado deve-se à Vale!).
Mesmo assim, vamos considerar um exemplo ainda mais diretamente de responsabilidade das empresas: a crise e o desemprego.
Ao longo desses anos, o refrão da Vale é que a maior riqueza da Companhia são os próprios trabalhadores; em tempo de vacas gordas, é fácil encher a boca com esses proclamas, mais difícil é manter a palavra durante a crise.
Daí o conflito desses dias: Vale anunciou o corte de 300 pessoas em Minas Gerais, mas os sindicatos suspeitam que esse número possa chegar até a 850. Indignados com esse anúncio, os sindicalistas ameaçam ocupar unidades da Vale caso a mineradora promova uma demissão em massa.
O “Sistema Sul” da Vale (MG) corre o perigo maior: nesse tempo de crise global, a Companhia trabalha para limitar os danos e aproveitou para liberar-se das minas de menor porte e com menor futuro (sobretudo no sistema sul, mas também em Ontário, Canadá, com ameaças de fechamento da mina de Subdury).
Mesmo tendo uma diminuição nos negócios no último trimestre, Vale fechou 2008 com um desempenho recorde (lucro e receita bruta cresceram de 2007 para 2008 respectivamente de 19% e 16,3%). O preço do minério permaneceu fixo ao longo do ano todo, mas nos últimos meses Vale está vendendo minério às empresas chinesas com 20% de desconto sobre o preço de referência de 2008, para não perder o mercado oriental em concorrência com outras mineradoras.
Na região de Carajás, porém, onde Vale detém o monopólio da mineração, não houve desconto algum: por isso, no Pará de 10 siderúrgicas existentes somente 3 estão trabalhando. Em Açailândia, importante centro siderúrgico do Maranhão, somente 6 sobre 15 altofornos estão ativados.
Vítimas dessa política econômica de controle do mercado e do lucro são as famílias dos desempregados de hoje e o meio ambiente de amanhã, quando para recuperar a crise a produção irá estourar sem controle nenhum sobre o impacto ambiental.
Em paralelo a essa “agressividade econômica”, temos desde já numerosos exemplos de violência ambiental. Os últimos foram um incidente grave na Nova Caledônia em Abril (vazamento de pelo menos 2.500 litros de ácido sulfúrico num rio próximo a um recife de corais Patrimônio da Humanidade pela UNESCO) e em Barcarena (Pará), onde houve um escoamento de efluentes da lama vermelha, liberados pelo transbordamento da bacia de rejeitos da Alunorte, provocando alterações físicas e químicas nas águas do rio Murucupi.
A poderosa máquina da propaganda da Vale divulgou no mesmo período dos acidentes o lema de “empresa cada vez mais verde”. Para o sistema do lucro, os acidentes são pequenos empecilhos e, às vezes, até oportunidades, como podemos aprender dessa fala emblemática do presidente da Companhia, Roger Agnelli: “Esta crise está boa para nós. Todos os rios caminham para o mar. A realidade é que nós temos os melhores recursos; nós temos o mais baixo custo e muitos dos grandes caras – que eram grandes há alguns meses – estão desaparecendo. Muitas companhias junior, muitos novos projetos, muitos sonhos já não estão mais aí e nós não estamos falando de sonhos; nós estamos aptos a fornecer minério de ferro, cobre, alumínio, manganês, carvão, níquel, para nossos clientes. Todos os rios caminham para o mar“.
De fato, Vale aproveitou nesses últimos meses para realizar operações economicamente muito significativas: inauguração da maior mina de carvão do hemisfério sul, em Moçambique; aquisição de minas da concorrente Rio Tinto no MS, na Argentina, na Colômbia e no Canadá; investimentos futuros na termelétrica de Barcarena (PA); negociação com a alemã Thyssen Krupp para concluir a construção da Companhia Siderúrgica do Atlântico, etc.
A organização do povo, ao mesmo tempo, está conseguindo alguns sinais de vitória: em ocasião da audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a empresa TKCSA (formada pela alemã Thyssen Krupp e a Vale) foi denunciada por violência ambiental e ameaças físicas dos pescadores da região (um deles está atualmente sob programa de proteção a testemunhas). O fato teve repercussão forte no Parlamento alemão e a TKCSA teve que re-estruturar seus quadros.
Na mesma cidade de Rio de Janeiro, porém, um grave luto atingiu os movimentos socioambientais:
Paulo César Santos era membro do grupo dos Homens do Mar, pescadores da baia de Guanabara em defesa de seus direitos contra mais uma obra do PAC em favor da Petrobrás na região. Foi morto em retaliação à resistência de seu grupo durante 38 dias de manifestação no mar.
Em busca de respostas evangélicas
A violência socioambiental continua coletando mártires silenciosos, mortes lentas e outras mais chocantes.
Esse apelo chega forte a nosso coração de missionários, chamados por Deus às fronteiras da luta para que Tudo tenha Vida. A justiça ambiental é a utopia mais completa que podemos buscar, a partir dessas terras preamazônicas que já sofreram inúmeras violações e saques.
As palavras de São João, padroeiro tão querido pelo povo do Nordeste, ressoam em nós com sabor de raiva e paixão pela justiça: “Raça de cobras venenosas, quem lhe ensinou a fugir da ira que vai chegar? Façam coisas para provar que vocês se converteram!”
Muitas vezes aplicamos as mensagens evangélicas aos comportamentos individuais; porém, se formos ler os mesmos trechos tendo nos olhos as atitudes das grandes empresas multinacionais em nossas terras, o evangelho trar-nos-ia inspirações novas: a verdade que Jesus e João pregavam está na concretude de obras correspondentes aos proclamas realizados. Atrás da maquiagem do poder econômico e sua propaganda, o cristão deve exigir a aplicação de recursos e projetos para o verdadeiro bem do povo e da terra.
Quando Jesus mandou escolher entre Deus e o dinheiro, não isentou a classe empreendedora dessa opção: há meios e possibilidade de investir e gerar trabalho e lucro no respeito da vida e do meio ambiente. Esses meios se encontram através de dinâmicas de partilha, de participação, de acesso de todos às decisões: são esses os valores profundamente evangélicos que devem permear também o mundo da economia, em profundo conflito com os valores do anti-reino (acumulação, centralização do poder e das escolhas, controle do capital, financeirização dos recursos, etc).
A campanha Justiça nos Trilhos
Para nós, Missionários Combonianos trabalhando no corredor de Carajás, uma frente de resistência, denúncia e busca de alternativas é a campanha Justiça nos Trilhos.
Desde o final de 2007, juntamente com muitos outros aliados do Maranhão, Brasil, Canadá, Itália, Moçambique e outros países de atingidos pela Vale, coordenamos atividades que busquem afirmar o “outro mundo possível” também em alternativa a esse modelo de desenvolvimento hoje mais do que nunca em profunda crise. Destacam-se entre os parceiros fundadores da campanha o Fórum Reage São Luís, o Fórum Carajás, a Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, o Sindicato dos Ferroviários de Pará-Maranhão-Tocantins, a CUT e a Cáritas do Maranhão, além de alguns valiosos professores e advogados.
Escolhemos a Vale pelo impacto violento que gera sobre nossas populações e pelo apelo de muitos outros amigos e companheiros espalhados pelo mundo; gostaríamos porém que esse modelo de luta (em nosso dia-a-dia de aprendizagem e indignação) fosse experiência útil também para outros grupos de resistência e outras comunidades missionárias que sentem o apelo por justiça socioambiental.
A seguir, acenamos em simplicidade a algumas estratégias de trabalho da campanha Justiça nos Trilhos para esse ano de 2009, na esperança que essa partilha sirva na construção cotidiana de nossas utopias concretas. Como diz Pedro Casaldáliga, “chega de proclamar que outro mundo é possível: vamos fazê-lo acontecer!”
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Ações ao longo do corredor de Carajás: o movimento encontra a população e tenta fortalecer a organização das comunidades, despertando a reação do povo em busca de seus direitos (indenizações, compensações), oferecendo formação jurídica e estimulando para que as comunidades levantem sua voz.
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Em articulação com outros movimentos: Justiça nos Trilhos fortalece as relações com outros impactados pela Vale que já se organizam em seus núcleos locais em outras regiões do Pará, Minas Gerais, Rio de Janeiro. A campanha é parte da Rede Brasileira de Justiça Ambiental e interage constantemente com instituições como o Ministério Público Estadual e Federal e a Defensoria Pública.
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Na pesquisa e documentação: uma das pesquisas em ato aborda o fenômeno dos “meninos do trem”, adolescentes clandestinos nos vagões de minério em busca de perspectivas nas regiões exploradas pela Vale. Outra documentação importante é a sistematização do impacto da Vale em muitos cantos do Brasil e do mundo: uma coletânea de informações padronizadas para perceber o tamanho da influência da Companhia sobre a vida dos povos com que interage.
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Integrando nossas lutas: somente na primeira metade de 2009, Justiça nos Trilhos participa de vários encontros: CPT do Pará, Rede Amiga da Criança no Maranhão, Tribunal Popular da Terra em São Luís, Rede Brasileira de Justiça Ambiental, seminário dos impactados pela mineração no sudoeste do Pará, seminário do Movimento pelas Serras e Águas de Minas Gerais, encontro no Ecuador do Observatorio de Conflictos Mineros de America Latina.
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Na divulgação: através de uma exposição fotográfica itinerante, um dossiê em várias línguas sobre Vale (economia, impactos e perspectivas), algumas videoentrevistas, artigos em revistas e livros, teatro-fórum sobre algumas realidades de conflito esplícito, o site www.justicanostrilhos.org e o blog http://relicariominado.blogspot.com
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Em nível internacional: através da participação ao Fórum Social Mundial (4 seminários temáticos com uma ótima participação de público e assessores) e da articulação das seguintes relações entre movimentos de atingidos em vários países do mundo.