Um mergulho na Inco, a operação canadense da Vale do Rio Doce, expõe as novas oportunidades e os grandes desafios das empresas nacionais que vivem o processo da globalização
15 de setembro, 2008



Por Cristiane Mano, de Toronto e Sudbury
EXAME

Uma inscrição discreta na porta de vidro que dá acesso ao 16o andar da torre sul do sofisticado condomínio Royal Bank Plaza, no centro de Toronto, é a única evidência de que ali funciona a sede da CVRD Inco. Dentro do escritório, recentemente decorado com sofás de couro e móveis de madeira clara, o nome da empresa não é exibido em lugar nenhum — nem mesmo nos cartões de visita dos executivos, que ainda mostram apenas a marca Inco. Cerca de 400 quilômetros ao norte, na cidade de Sudbury, fica o maior complexo de minas da empresa. Faz mais de um ano que as minas pertencem à Vale do Rio Doce, embora não existam sinais visíveis disso — à exceção de uma pequena e improvisada placa de madeira na entrada principal. O executivo mineiro Murilo Ferreira, de 54 anos, presidente da operação canadense, espera que as coisas continuem assim até o final deste ano, quando a Vale substituirá seu tradicional logotipo por uma marca global, ainda mantida em sigilo. A troca é simbólica. Os executivos da empresa sabem que a Vale do Rio Doce já não pode ser a Vale do Rio Doce. A aquisição da Inco — por 18,7 bilhões de dólares, a maior já feita por uma empresa nacional — é o emblema do processo tardio de globalização pelo qual as companhias brasileiras vêm passando. Um mergulho na operação canadense — já comandada por brasileiros — permite a visão das oportunidades e dos enormes desafios que acompanham esse processo. Na saga da Vale fora do Brasil, uma lição fica evidente — os problemas continuarão existindo, eles só mudarão de natureza. Aqui, empresas como a Vale do Rio Doce lutam contra a imprevisibilidade de índios e sem-terra que invadem suas minas ou seus escritórios e de facções políticas que contestam sua privatização. Lá fora, muitas vezes, a maior dificuldade está justamente em lidar com a rigidez das regras.

Efeito multiplicador Após a aquisição da Inco, a Vale saltou da quarta para a segunda posição entre as maiores mineradoras do mundo, atrás da australiana BHP Billiton… Faturamento (em reais) 1º sem/2006 18 bilhões 1º sem/2007 35 bilhões Lucro líquido (em reais) 1º sem/2006 6 bilhões 1º sem/2007 11 bilhões …e se tornou a 16ª maior do mundo em valor de mercado, à frente de Apple e Coca-Cola(2) Valor de mercado (em reais) 29/out/ 2007 320 bilhões 24/out/ 2006(1) 140 bilhões (1) Data de compra da Inço (2) Em 29 de outubro de 2007

Fontes: empresa, Economática e Brascan

A Vale vem crescendo com tremenda velocidade. Desde a privatização, em 1997, incorporou 19 concorrentes — um investimento de quase 50 bilhões de reais, em valores atualizados. Nada se compara, porém, ao efeito da compra da Inco, a maior mineradora de níquel do mundo. Do dia para a noite, a Vale passou da quarta para a segunda posição entre as maiores mineradoras do planeta, atrás apenas da australiana BHP Billiton. Nos últimos 12 meses, a companhia ganhou impressionantes 100 bilhões de dólares em valor de mercado, que passou a ser de cerca de 180 bilhões de dólares — o equivalente a 320 bilhões de reais (veja quadro ao lado). O salto espetacular a fez constar entre as 20 empresas mais valiosas do mundo, à frente de ícones globais, como Apple e Coca-Cola. A principal razão do otimismo dos investidores é o crescimento da companhia no primeiro semestre deste ano: as vendas atingiram 35 bilhões de reais, quase o dobro do valor registrado no mesmo período de 2006. O lucro acompanhou o crescimento e chegou a 11 bilhões de reais — o que lhe garantiu o título de companhia aberta mais lucrativa do país. “Os resultados da Vale dobraram de um ano para o outro em grande parte graças à Inco”, diz Roger Agnelli, presidente da Companhia Vale do Rio Doce. Com caixa de sobra graças à alta dos preços dos metais, a companhia avança. No início de outubro, anunciou investimentos de 59 bilhões de dólares para os próximos cinco anos. A descoberta anunciada em meados de outubro da maior mina de ferro do mundo, em Minas Gerais, levou analistas de bancos como o americano Merrill Lynch a projetar que a empresa deverá se tornar a maior mineradora do planeta até 2010.

Crescer, crescer, crescer

A expansão contínua é o novo lema da CVRD Inco e está ditando o ritmo da integração entre as duas companhias.

CENTRALIZAÇÃO

Na tradição da Inco, os gerentes de cada mina tinham autonomia para escolher até políticas de remuneração. Os executivos da Vale aos poucos estão padronizando essa estrutura descentralizada.

MAIS DIÁLOGO

Aos poucos os executivos da Vale estão acabando com a tradição da Inco de deliberar por e-mail. O objetivo é aumentar a velocidade das decisões.

PLANO DE SUCESSÃO

Os executivos da CVRD Inco estão sendo incluídos no programa mundial de sucessão da Vale. Cerca de 400 deles já foram entrevistados pela consultoria Egon Zehnder.

BÔNUS

Após o fechamento de capital da Inco, a empresa substituiu as antigas opções de ações de 500 executivos por bônus atrelados ao desempenho das ações da Vale.

INVESTIMENTOS

O bilionário projeto de exploração de níquel em Goro, na Oceania, deve iniciar em 2008.

METAS INDIVIDUAIS

A partir do ano que vem, os mais de 10 000 funcionários da Inco terão metas individuais.

A EXPERIENCIA DA VALE REPRESENTA HOJE

um exemplo sem precedentes da estatura — e dos novos dilemas e obstáculos — que as empresas brasileiras podem alcançar em sua expansão lá fora. O avanço tem sido acompanhado de desafios igualmente gigantescos. O primeiro deles tem a ver com a inversão da lógica tradicional de dominação global, em que, historicamente, companhias de países desenvolvidos adquirem empresas brasileiras — e não o contrário. “Sabíamos pouquíssimo sobre a CVRD quando ela fez essa aquisição num setor tão representativo para o Canadá”, diz Donald Merleau, analista da agência de risco Standard & Poors, sediada em Toronto. Além de repentino, o movimento da Vale enterrou os sonhos de expansão da própria Inco. À época, o ex-presidente Scott Hand se preparava para comprar a também canadense Falconbridge (adquirida pela suíça Xtrata). Em outras palavras, a Inco de repente passou de caçadora a caça. A virada, para investidores e executivos, representou o fim de uma era. Até então, a Inco se orgulhava de estar listada entre as 25 maiores companhias canadenses, com um valor de mercado de 12 bilhões de dólares. A aquisição significou o fechamento de seu capital, por quase um século negociado nas bolsas de Toronto e de Nova York. A companhia era identificada apenas com a letra N, algo reservado apenas a companhias tradicionais, como a Ford — reconhecida pela letra F. Na ocasião, o principal jornal de dizia: “Scott Hand tinha o sonho de manter a Inco em mãos canadenses. Não deu certo”. Nos últimos dois anos, 600 empresas canadenses foram vendidas para estrangeiros. A recente compra da Alcan pela australiana Rio Tinto acendeu novamente o debate e certo espírito nacionalista. Em outubro, o grupo dos 150 executivos mais influentes do país encaminhou ao governo federal uma pesquisa mostrando o efeito do que eles chamam de “esvaziamento” da cúpula de companhias canadenses. Segundo o estudo, quatro entre cinco presidentes de empresas acham que o governo deveria impor restrições às aquisições por estrangeiros.  Foi esse cenário de derrota e desconfiança que os primeiros 70 executivos brasileiros da Vale encontraram ao chegar a Toronto, em outubro do ano passado. “A primeira conversa entre as equipes da Vale e da Inco foi bem desconfortável”, diz o canadense Scott McDonald, vice-presidente de recursos humanos da CVRD Inco. “Éramos desconhecidos e, naquele momento, estávamos sob o efeito da quebra de expectativa de que nós seríamos os compradores.” O fechamento de capital resultou também no fim imediato de pacotes de opções de ações para cerca de 500 executivos da mineradora canadense — uma conseqüência um tanto impopular. (Atualmente, esses pacotes estão sendo substituídos por bônus atrelados ao desempenho das ações da Vale.) A drástica mudança incomodou até o governo canadense. “Ainda hoje, acompanhamos a integração de perto e nos encontramos todos os meses para saber o que está acontecendo”, diz Marc Leroux, assessor do ministro das Minas do estado de Ontário, Rick Bartolucci. É fácil entender o porquê de tanto cuidado. A Inco é a maior empresa da região. A maior parte dos moradores vem de famílias que trabalham na companhia há três gerações. As chaminés da Inco são visíveis de qualquer ponto da cidade. A influência da mineradora pode ser percebida até pelos turistas: o único passeio para quem visita a região é a descida a uma mina desativada na propriedade da empresa.  A tarefa de lidar com a ansiedade de tanta gente — de funcionários a representantes do governo — tem ocupado boa parte da agenda de Ferreira. “Tenho trabalhado até nos fins de semana para circular por todas as operações da companhia e conhecer as pessoas”, diz ele. Administrador de empresas formado pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo, Ferreira entrou na Vale em 1998, como diretor financeiro e comercial das operações de alumínio (ele havia trabalhado na companhia também durante um período pré-privatização). Antes de assumir a presidência da CVRD Inco, em janeiro, ele tinha o cargo de diretor de fusões e aquisições da Vale e era responsável por rastrear oportunidades ao redor do mundo. Ao lado de Agnelli, articulou a aquisição da Inco e coordenou o planejamento inicial de integração entre as duas empresas. No início do ano, quando o ex-presidente da Inco, Scott Hand, decidiu se aposentar, Agnelli rapidamente indicou Ferreira para substituí-lo. Depois de morar por algumas semanas num hotel, ele se mudou com a mulher e a filha, de 16 anos, para um apartamento no sofisticado bairro de Yorkville, a 10 minutos do escritório. A indicação de Ferreira, braço direito de Agnelli na aquisição da Inco, consolidou o perfil de financistas na liderança da mineradora (o economista Agnelli fez carreira no Bradesco até ser apontado para a presidência da Vale, em 2001). Na concorrência, esse é um perfil um tanto incomum. O presidente da BHP, Marius Kloppers, por exemplo, é engenheiro com Ph.D. em ciência dos materiais.  Logo nos primeiros dias, Ferreira passou o recado de que dali para a frente prevaleceria um estilo mais espartano do que os padrões antigos da Inco. Uma das últimas medidas de seu antecessor foi definir a mudança do escritório da empresa para o Royal Bank Plaza, um condomínio cujas janelas são revestidas de uma fina película de ouro (é isso mesmo: ouro). Embora não tenha conseguido impedir a transferência para a nova sede, Ferreira cortou alguns excessos. A principal interferência, segundo ele, foi a extinção de um andar inteiro destinado apenas a salas de reunião. Ele também determinou que o tamanho e a decoração da sala de todos os executivos de primeiro e segundo escalões fossem exatamente os mesmos — um espaço de pouco mais de 9 metros quadrados com uma mesa e um pequeno armário. No futuro, Ferreira pretende fazer outra grande alteração no escritório e na rotina dos executivos: colocar toda a diretoria numa única sala, sem divisórias, como acontece na sede da Vale, no Rio de Janeiro. “Percebemos que fazer isso agora seria uma ruptura muito grande para os diretores”, diz ele.  Para tentar entrosar uma equipe formada por pessoas de culturas tão distintas, Ferreira está estimulando os executivos a trocar os e-mails por conversas cara a cara. Com isso, o número de reuniões multiplicou. Alguns veteranos da Inco não gostaram. “O novo modelo funciona, mas às vezes tenho a sensação de ter a mesma conversa uma dezena de vezes”, diz o sul-africano Simon Fish, vice-presidente jurídico da CVRD Inco. Ao lado do vice-presidente de marketing, Peter Goudie, Fish é um dos dois únicos executivos que estavam na cúpula da companhia antes da aquisição. (Além do presidente, os outros três vice-presidentes deixaram a empresa no começo deste ano.) Hoje, além de Ferreira, outros nove executivos brasileiros estão como expatriados nas operações da Inco.  UMA DAS MUDANÇAS MAIS DRASTICAS que Ferreira vem implementando é a padronização das estruturas e a centralização do processo de decisões. Antes da aquisição, cada uma das minas e refinarias que a CVRD Inco possui no Canadá, na Inglaterra e na Ásia tinha autonomia para decidir sobre projetos de investimento ou políticas de remuneração para os funcionários. “A descentralização dificulta a disciplina na alocação de capital, um de nossos princípios mais valiosos de negócios”, diz Ferreira. Esse não é o único efeito colateral. A autonomia em excesso também gera confusões. Prova disso é a variedade de negociações trabalhistas no complexo de minas em Sudbury. Há três negociações estabe lecidas com diferentes grupos de funcionários — o que acabou gerando distorções. Atualmente, os funcionários que trabalham na extração de níquel ganham mais que seus supervisores, cujo sindicato não negociou um pacote tão generoso de participação nos lucros. Graças a sindicatos fortes, a Vale teve de enfrentar uma greve, em abril — a primeira desde que a empresa começou a se internacionalizar. Durante dois dias, 330 dos 4 600 funcionários pararam de trabalhar num protesto contra a diferença de distribuição nos lucros da Inco e da concorrente Xtrata, que opera em áreas vizinhas e deu bônus maiores a seus empregados. Tudo o que os canadenses da Vale não querem é a mudança — muitas vezes necessária — das regras.  Organizar esse caos é um trabalho que vai se intensificar a partir do ano que vem. Um dos aspectos mais delicados será a integração das políticas de remuneração da Inco dentro dos padrões da Vale. “Será uma tremenda ruptura”, afirma McDonald, vice-presidente de RH. A primeira novidade é que todos os funcionários terão metas individuais — e quem atingi-las poderá ganhar até seis salários extras por ano. “Deve haver certa resistência às novas políticas”, diz Doug Olthuis, representante do sindicato de mineiros que atuam no estado de Ontário. “Mas a empresa tem sido aberta ao diálogo.” Outra bomba-relógio é a idade média da equipe. No caso das minas de Sudbury, uma cidadezinha de 160 000 habitantes, cerca de 20% dos funcionários poderiam estar aposentados hoje. Por onde quer que se olhe nas instalações da companhia em Sudbury, é possível encontrar homens de cabelos brancos — mesmo dentro das minas subterrâneas, cavernas escuras e úmidas com até 2 quilômetros de profundidade, nas quais entra-se apenas de caminhão ou em elevadores parecidos com gaiolas. As mudanças na política de remuneração podem fazer com que eles decidam sair, o que seria desastroso para os planos de expansão. Para acalmar os ânimos de sindicatos e até do governo, Ferreira tem na agenda encontros periódicos com alguns de seus representantes. Nessa empreitada, ele tem recebido a ajuda de Agnelli, que viaja em média uma vez por mês ao Canadá. Numa de suas primeiras visitas, ele vestiu macacão e capacete, desceu nas minas e tirou foto ao lado de alguns funcionários.  Em meio a tantos problemas novos, a Vale encontrou alguns mais familiares. Com experiência em lidar com conflitos indígenas no Brasil, seus executivos estão tendo de enfrentar a antipatia de aborígenes na Nova Caledônia, uma minúscula colônia francesa na Oceania. Trata-se de um dos mais vultosos projetos da Vale no mundo, com custo total de 3,2 bilhões de dólares. Iniciada ainda pela antiga Inco há cerca de cinco anos, as obras para a exploração da mina nesse arquipélago estão paralisadas. Recentemente, a empresa mandou para o país o executivo Ricardo Saad. Como gerente de implantação de projetos no Brasil, Saad já lidou com problemas tão complexos como a invasão de sem-terra e de índios em instalações da Vale na região de Goiás. A companhia também já trouxe ao Brasil duas delegações de aborígenes para conhecer seus projetos. A expectativa é de que o conflito seja resolvido e as explorações no país se iniciem em 2008.

A Vale também tem uma estratégia de crescimento para o Canadá. Neste ano, a mineradora aprovou dois projetos de expansão em Sudbury. Um deles é a abertura de uma nova mina, que vai consumir 350 milhões de dólares até 2009. O outro, com investimento inicial de 20 milhões de dólares, dobrará a extração de níquel, utilizado na composição de aço inoxidável e de baterias, na centenária mina de Creighton. Há dois meses, o pernambucano Paulo Fernando Souza, de 46 anos, deixou o posto de coordenador de projetos da Vale, em Belo Horizonte, para começar a expansão. “Estamos operando 24 horas por dia, sete dias por semana”, diz ele. “E precisamos aumentar nossa capacidade.” Pelo menos os executivos brasileiros já entenderam o lema de Ferreira.