Carta Política do VI Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental
9 de setembro, 2014

Representantes dos movimentos sociais, ONGs e grupos de pesquisa que compõe a RBJA estiveram presentes no VI Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Ao final do encontro, os participantes construíram uma carta política como forma de protesto contra os impactos socioambientais e reivindicação de direitos civis e coletivos.

Segue abaixo a carta na íntegra:

Carta Política do VI Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental Belo Horizonte – 24 a 26 de julho de 2014

Nós, participantes do VI Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, realizado em Belo Horizonte, Minas Gerais, entre 24 e 26 de julho de 2014, somos integrantes de movimentos sociais do campo, da floresta e da cidade, de povos e comunidades tradicionais, de organizações não governamentais e pesquisadores, moradoras e moradores de zonas de sacrifício ou ameaçadas pelo modelo atual de desenvolvimento: agricultoras (es), brejeiras (os), catadoras (es) de caranguejos, geraizeiras (os), quilombolas, marisqueiras (os), pescadoras (es), povos indígenas, povos de terreiro, ribeirinhas (os), vazanteiras (os), militantes de organizações da sociedade civil, religiosas(os), estudantes, pesquisadoras (es), professoras (es) comprometidos com a luta por Justiça Ambiental.

Partilhamos da compreensão de que a reprodução da lógica de des-envolvimento baseado no crescimento ilimitado somente se viabiliza porque distribui de forma desigual danos e violações sobre os povos historicamente discriminados. Ao contrário de um certo “senso comum” ambiental, a poluição não é democrática, não atinge a todos de maneira uniforme e não submete todos os grupos sociais aos mesmos riscos e incertezas. Igualmente é imposta, por meio da violência, da desinformação e da desqualificação, a perda dos territórios e do acesso aos bens naturais como condição para expansão do modelo, como garantia de lucratividade ao capital. A expansão ilimitada do capital globalizado se faz às custas de injustiças ambientais, mascaradas sob o discurso desenvolvimentista do benefício de todos.

As grandes corporações “sem rosto” estendem, sob os auspícios dos Estados Nacionais, seus tentáculos sobre os territórios em busca dos bens naturais que restam e extraem mais-valia da vulnerabilização das comunidades, povos e grupos sociais dotados de menos poder. Engendram as crises energética e alimentar como se não fossem resultantes de seu expansionismo predador, o mesmo que propõem como solução única e urgente para elas. Para a primeira, mais hidrelétricas, petróleo e gás, agrocombustíveis, parques eólicos e usinas nucleares. Para a segunda, mais agronegócio, monoculturas, erosão da agrobiodiversidade, transgênicos e agrotóxicos. Todas formas de degradação do solo, subsolo, matas e águas, comprometendo o habitat de espécies e o presente e futuro de povos inteiros. Falsas soluções que, na verdade, só resolvem sua ânsia insaciável de lucros crescentes. E agravam a crise socioambiental, à qual se pretende responder com mecanismos de mercantilização da natureza e inclusão social consumista.

O Estado democrático de direitos, duramente conquistado, uma vez capturado pelas corporações, tornou-se inimigo dos povos atingidos pelos empreendimentos expansionistas. Com preocupação, observamos a flexibilização de legislações como o Código Florestal, o marco regulatório de Mineração, a regularização de terras indígenas, as obrigações da Convenção 169 da OIT e o licenciamento ambiental. Neste contexto, verificamos também a ressignificação de espaços de participação, no processo da redemocratização, como locus para, entre outros, reivindicar e assegurar direitos civis e coletivos em campos de negociação, em que direitos são transformados em interesses, sujeitos a barganha. Essa cultura da negociação permeia os conselhos responsáveis pelo licenciamento ambiental, a gestão de Unidades de Conservação e iniciativas de certificação ambiental e declarações sobre a responsabilidade social e ambiental de empresas. A preocupação maior é que até o Ministério Público está adotando cada vez mais a estratégia de procurar caminhos extrajudiciais para a resolução negociada de conflitos e a elaboração proliferada de termos de ajustamento de conduta (TACs). Destaca-se, neste contexto a criação do NUCAM (Núcleo de Resolução de Conflitos Ambientais) do Ministério Público em Minas Gerais, que estabeleceu uma parceria com o Banco Mundial, para testar estes instrumentos de uma suposta “boa governança” em casos de conflitos em torno da mineração.

Entendemos que a partir dessa nova crença na administrabilidade de conflitos sociais estamos diante um processo da inversão da democratização, pois estão sendo fragilizados aqueles grupos que não conseguem se impor nas negociações, ou seja, aqueles que mais necessitam instâncias que defendam os seus direitos. Desta forma, as novas formas participativas de “gestão” estão sendo apropriadas por detentores de poder tradicionais, que dominam as negociações. Existe uma falsa impressão de horizontalidade na participação, nesta disputa ideológica e semântica da questão da governança e participação. O resultado é a oligarquização do poder – e não a democratização – destes novos campos de políticas públicas ditos socioambientais.

Assim, impõe-se a participação compulsória dos afetados em estudos de impacto e audiências públicas, como mera aceitação legitimadora dos empreendimentos. Violência física e simbólica, incluindo aqui a espionagem, passa a ser recurso plausível para desvalorização e desconstrução das identidades, como a criminalização de movimentos sociais, de comunidades e povos originários e tradicionais, assim como a prisão e assassinato de militantes.

O processo de produção do conhecimento científico, que se autodetermina “neutro”, porém que se mostra atrelado e submisso ao modelo hegemônico de desenvolvimento, baseado na expropriação dos bens naturais e dos territórios, segue a lógica produtivista e tecnocientífica do capital, que transforma a ciência em mercadoria, acentua os processos de desigualdade social e de racismo ambiental, invisibilizando os modos de vida dos povos e os processos de construção do saber popular.

Nenhuma nação democrática e soberana pode submeter seu desenvolvimento intelectual, tecnológico e científico aos interesses privados. A sociedade tem o direito irrenunciável de usufruir dos processos desenvolvidos por uma ciência construída a partir de diversos saberes e não apenas o acadêmico. Uma ciência que seja autônoma, transparente, comprometida com a vida, que sirva de instrumento de controle social e atue na defesa dos interesses de todos e todas, desde um lugar situado na sociedade e não nomercado. Denunciamos mais uma vez as formas de apropriação dos bens públicos e a exclusão da sociedade civil organizada nas definições das políticas de desenvolvimento científico e tecnológico brasileiro, que acontecem marcadamente no Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).

O território em que vivemos molda nossas identidades. A ele pertencemos, é parte de nós. É a última trincheira contra a devastação: não deixaremos invadir nosso espaço, nem contaminar nossa cultura. As riquezas naturais não são recursos para a exploração, mas bens comuns para a vida das comunidades. Nelas, nós atingidos nos consideramos sujeitos políticos com faces e corpos, ameaçados por atores sem rosto, que nos vêem como “entraves ao crescimento”. Frente à aliança entre o Estado e o grande capital, a nossa luta não é somente resistência, mas afirmação de uma outra existência possível, profundamente enraizada na terra em que vivemos.

Nós, dos grupos sobre os quais são impostos os custos desse modelo, somos os sujeitos políticos das lutas por Justiça Ambiental, pautados pela valorização de pensamentos e práticas sociais coletivas e solidárias, de formas econômicas não predatórias, de experiências alternativas (novas e tradicionais) de produção, que aproveitam os bem naturais, considerando a capacidade de suporte e resiliência do ambiente, prezando pela promoção do bem estar da coletividade, do bem viver, pela defesa dos bens comuns e do livre exercício da diversidade étnica, racial e sexual. Estamos comprometidos com construções positivas e alternativas, com agroecologia e reforma agrária, soberania alimentar, demarcação das terras indígenas, reconhecimento das terras quilombolas e dos direitos dos povos tradicionais.

Buscamos desmascarar a responsabilidade social corporativa que dificulta e até impede a luta por direitos. Em tempos eleitorais, em que candidatos usam subterfúgios como “desburocratizar” os processos de licenciamento ambiental e “flexibilizar” legislações, denunciamos as investidas no sentido de efetivar o desmonte dos mecanismos de controle social relacionados ao meio ambiente e à participação social. Na medida em que crescem as violações de direitos que produzem injustiças, nossa rede cresce e ganha força, possibilitando e fortalecendo diálogos e ações de resistência em rede.

Denunciamos, nesse momento, os seguintes conflitos:

• A expansão da geração de energia. Não falamos aqui dos problemas causados pelas fontes convencionais ( petróleo, gás de xistos, energia nuclear e terméletricas), mas também sobre as supostas alternativas energéticas (hidrelétricas, usinas eólicas entre outros). Estas são na verdade apenas energias complementares às fontes de energia convencionais, contextualizadas na ideologia do crescimento econômico ilimitado. • A monoculturização da produção agrícola com base empresarial (mecanizada, utilizando agroquímicos e cultívos transgénicos) em detrimento da agricultura familiar, causando o cercamento da produção com base na agroecologia. • A implementação de Unidades de Conservação, desconsiderando os povos que ali estabelecem seus modos de vida. • A mercantilização da natureza ao invés de trata-la como bem comum, como acontece em torno do mercado de carbono e a politicas de serviços ambientais e estratégias de mitigação e compensação de impactos, entre outros. • A expansão desregrada dos projetos de mineração e o avanço dos complexos industriais em torno da mineração e siderurgia, envolvendo obras de infraestruturas, como minerodutos, rodovias e portos • A contaminação da água, do ar e do solo através da aplicação de agrotóxicos, rejeitos da mineração e emissões pela produção industrial, que ameaçam povos rurais, urbanos e outros que tem ecossistemas aquáticos como sustento das suas vidas. • A crise da moradia provocada pela transformação do solo urbano em mercadoria, sujeito a valorização exagerada, que empurra aqueles que não conseguem o acesso aos imóveis formais, para áreas sujeitas a riscos ambientais e ecologicamente sensíveis.

• A subsequente segregação socioespacial, em que os moradores marginalizados são expulsos para periferias cada vez mais distantes e sofrem o peso do abuso nos preços do transporte público.

Tais conflitos tem um eixo comum: a negação ou destruição do território necessário para a manutenção das diversas formas de vida de povos e comunidades marginalizados no campo e na cidade. Denunciamos uma violação repetitiva e permanente da declaração dos direitos humanos universais de 1948 e a constituição de 1988, Art. 8, onde consta que toda pessoa tem direito a um padrão de vida digno a si e sua família, à garantia a saúde e bem estar, incluindo a soberania alimentar e a habitação.

Entendemos que tais direitos precisam ser fortalecidos através da reformulação de um marco regulatório que garanta a cada cidadão o direito ao território.

Nesse sentido lutamos pelo envolvimento que nos fortalece e nos valoriza enquanto sujeitos de direito, povos da floresta, do campo e da cidade que constroem cotidianamente alternativas a um modelo econômico e político que insiste em nos dês-envolver.

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